segunda-feira, 4 de março de 2013

a-ver-outros-livros no Metro: Cardoso Pires

Ando há uns dias com o braço pousado sobre três volumes de Cardoso Pires, recordando do autor o ar de bonomia com que ainda o conheci e com que o cartoonista António o retratou na parede de mármore da estação de Metropolitano do Aeroporto, em Lisboa, lado a lado com mais de meia centena de figuras gradas.

José Augusto Neves Cardoso Pires (São João do Peso, Vila de Rei, 2 outubro 1925 — Lisboa, 26 outubro 1998), escritor, jornalista. Curiosamente, licenciado em Matemáticas Superiores. Não sei se esse canudo lhe teria tornado mais fácil a tarefa de escolher entre "O Delfim", "Alexandra Alpha" ou o sempre presente "Balada da Praia dos Cães".

Decido não escolher. Vou abrir ao acaso uma página de cada e transferir para aqui o primeiro trecho em que o meu olhar se prender. 


"Elias a páginas tantas do processo quase não interroga, deixa correr. Encavalita-se ali naquela cadeira, cotovelos sobre o espaldar e prepara-se para grandes vagares. Conte, diz ele. Comece por onde quiser.
Mena está sentada na tarimba, contra a parede, as mãos cruzadas na nuca. Hoje tem um pullover sem mangas em cima da pele: tufos de pêlos irrompem-lhe das axilas. Debruçado nas costas da cadeira o polícia estuda-a com olhos de míope.
Mena. Os braços erguidos alteiam-lhe os seios que parecem soltos e estão mesmo (sem soutien, pela maneira de descair do pullover) e os pêlos do sovaco são de um negro seco e agreste, tão negro como é decerto todo o cabelo que ela tem no mais privado do corpo e com um gosto acidulado, retenso. O chefe de brigada tira um limpa-unhas do bolso num movimento paciente.

Silêncio. O silêncio do preso é a insónio do polícia, aguardemos."

in "Balada da Praia dos Cães"

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"Tomás Manuel  baixa os olhos para o copo, fica uns momentos calado. Depois:

'Não há dúvida que tenho que ler os teus livros.'
'Kaputt. Sobre os meus livros peço tréguas.'
'Falo a sério, pá. De qual é que tu gostas mais?'
Encho-me de paciência. Respondo-lhe que gosto de todos os livros que escrevi, e de maneira e por razões diferentes; que em todos falta qualquer rasgo do acaso para os tornar definitivos, acabados, e daí nunca poder abandoná-los, gostando ainda mais deles por isso. Depois - explico - cada romance tem as suas recordações à margem das aventuras que conta, cada um vai crescendo com o tempo, corrigindo-se com o corpo e a voz do homem que o escreveu. Isso, as memórias ligadas a uma obra e a certeza de a trazermos continuamente connosco, suspensa, inacabada, é que tornam feliz a arte de escrever.
"

in "O Delfim"

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"Foi então que ela caiu em si e percebeu o ridículo do que acabava de dizer. 'Porque é que os portugueses estão sempre a pedir desculpa do país', tinha perguntado uma vez um jornalista alemão. E, merda, ela, a Maria, só lhe vinha dar razão, acabava de se comportar como um cicerone envergonhado da terra que lhe coube na sina.
Puxou de um dos seus famigerados mata-ratos. Imperdoável. Ela, armada em proviciana desdenhosa, a rir-se dos poderes domésticos para divertimento de um françois qualquer.
"

in "Alexandra Alpha"
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Para terminar, dois vídeos com excertos de uma entrevista gravada em 1987 na sua casa da Costa da Caparica. Boa viagem!






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