segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Metade Maior apresentado no Porto

"Metade Maior", o mais recente romance de Julieta Monginho, é uma obra-prima de ironia, de sensibilidade, de subtileza. Tecido de pequenos traços - mas traços indeléveis na memória e no fascínio dos leitores - este é um livro que dá eco a uma multiplicidade de vozes, de gargalhadas, de melancólicos murmúrios também. Como um grande circo chegado da infância de cada um de nós, como a memória de um épico Fellini.

A vencedora do Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB 2008, com "A terceira mãe", vem ao Porto apresentar a sua mais recente obra. Para aguçar o apetite aqui fica o convite e um excerto do texto lido, na sessão de lançamento do livro em Lisboa, pela autora
«Tal como o mundo, este livro começou com uma maçã. Partida amorosamente em duas metades desiguais. Quem parte e reparte e não fica com a maior parte tem a arte da justiça sábia, a que dispensa o positivismo e a aritmética, por ser conduzida pelo amor.

Começou, depois, quando ouvi falar dos buracos que por aí vão, no centro da cidade. Disse-me Teresa Espírito Santo, então Presidente da CPCJ de Lisboa Centro: "Abre-se um buraco e sai uma família inteira, às vezes várias famílias todas juntas". E eu fui lá ver. Espreitei labirintos, subi e desci escadas. Subi os degraus encerados da pensão que um homem sobe na primeira frase do livro.

Esta frase criou um movimento que por sua vez criou personagens e foram elas que criaram a história. Não reivindico o lugar passivo do escritor (aliás penso que é uma treta), mas desta vez o que fiz foi tentar interpretar o universo que nasceu da interacção entre elas.
Quando pela primeira vez percorri a Av. Almirante Reis, que é o ponto de referência real desta avenida imaginária - da pacatez da Praceta João do Rio até à babilónia do Martim Moniz - fiquei deslumbrada pela diversidade em expansão, pelos infinitos enredos que pareciam estar ali com o propósito de que alguém os escrevesse.

Fez-me lembrar uma ocasião, há alguns anos, enquanto almoçava no Museu Reina Sofia, quando vi aquela profusão de cores, maneiras de vestir, de falar, de olhar, dos visitantes.

Lembro-me de ter comentado: daqui a uns anos vão estar todos misturados, mulatos de olhos em bico, olhos azuis e franjas negras, caras pálidas coroadas de penas, uma festa. Como sabemos agora, era um sonho irresponsável e muito acima das nossas possibilidades.
Na Avenida Almirante Reis, este sonho começou a desenrolar-se ao contrário. O movimento de expansão começou a regredir, o espaço das pessoas começou a encolher. Sempre que lá voltava via cada vez mais buracos e cada vez mais gente a desaparecer dentro deles. Gente que pouco a pouco vai perdendo mobilidade, sendo despojada até do desejo de deslocação.

O sonho da expansão da diversidade ficou lá atrás, como um ex-futuro que hoje nos parece interdito, sacrificado por um desígnio que sentimos demente e injusto.

A ilusão da aritmética não se confunde com a justiça nem pode substituí-la.

"A justiça não existe. A justiça existirá se nós a praticarmos", disse o filósofo Allain. "A justiça não faz a felicidade, mas nenhuma felicidade dispensa a justiça", diz o filósofo André Compte-Sponville. A justiça procura-se através da palavra que afirma o direito, sem nunca deixar de interrogar a fragilidade e a contradição do humano, acrescento eu.

As personagens deste livro debatem-se, como nós, com o encolher do espaço e a distorção do movimento, num tempo confuso, veloz mas sem objectivos, desencontrado da medida humana. Todas sonham que cada dia é o primeiro e nunca será último. Se isso será fim ou princípio é o que vamos ver.»

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