segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

a-ver-outros-livros no Metro: viagem com Vergílio

Ler Vergílio Ferreira é como andar de Metro - encontramos inúmeras estações e em todas algo que merece ser lido, relido e citado. Só na estação do Aeroporto está de corpo, sentado no cadeirão de azulejos que lhe desenhou António, o cartoonista a quem o Metropolitano de Lisboa encomendou a decoração artística daquele apeadeiro, inaugurado em Julho passado. Dedos tocando-se. As rugas na testa de tanto pensar o que poucos pensam e menos ainda escrevem. 

Vergílio António Ferreira (Gouveia, 28 janeiro 1916 - Lisboa, 1 março 1996) fez ficção, ensaio e diário. Dos seus inúmeros livros, "Manhã Submersa" será talvez o primeiro em que se pensa, uma vez que foi adaptado para o cinema por Lauro António. Mas os seus escritos são vastos - e escolher um trecho para partilhar convosco foi, confesso-o, o cabo dos trabalhos. 

Acabei por render-me ao tema dos livros. Lê-los e escrevê-los. Apreciem. Continuação de boa viagem.

"O Livro Bem Escrito

Que ridículo e mesmo estúpido dizer-se de um livro que está bem escrito. Não é «bem escrito» que está. Está é sentido originalmente, original nas observações, inteligente na reflexão. É por isso que não se pode imitar. Pode-se é ser original de outra maneira. Há realmente livros que são apenas «bem escritos». São os livros banais, com palavras trabalhadas ao torno, frases que se pretendem «despojadas», reduzidas ao «essencial», e cruas. Mas como o que nelas está não representa um sentir originário, nem uma observação imprevista, nem uma reflexão que nos surpreenda pela justeza e profundidade, o que delas resulta é uma construção pretensiosa, estéril e quase sempre irritante. Decerto um romance (como a poesia segundo Mallarmé e como creio já ter dito), faz-se com palavras. Pois com que é que havia de fazer-se? Mas antes disso faz-se com o impulso animador a essas palavras e que assim não passa bem por elas mas por entre elas, fazendo delas apenas um apoio para passar além, como o som passa pelas cordas mas existe por entre elas e é nesse som o indizível que nos emociona. O que nos fica de um livro «bem escrito» é essa emoção que já não lembra as palavras e vive por si.

Eis porque tal livro é inimitável e apenas poderá repetir-se, ou seja plagiar-se. Imitar verdadeiramente esse livro é recompor uma emoção afim e inventar outras palavras que traduzam esse sentir, ou seja que lhe sirvam de pretexto ou estratagema para que esse sentir (e pensar/sentir) se realize como a música nas cordas de um instrumento. O escritor medíocre imagina que todo o seu trabalho deve incindir no trabalhar uma frase. Ora não é a frase que tem de se trabalhar: é aquilo que há-de passar por ela. Os autores célebres que trabalharam a frase, na realidade trabalharam apenas aquilo que haviam de exprimir; testaram na frase a realização de uma expressão. O escritor medíocre dá como já adquirido o que haveria a dizer e todo o seu esforço é secar o período, burilar ou envernizar o vocábulo. E no fim de contas, este é que «escreve bem». Mas quem assim escreve bem, escreve bastante mal. Não digo rasamente que o «conteúdo» preceda a sua «expressão». Mas o que preexiste à expressão não é um puro nada. Exprimir é operar e concretizar esse algo. Mas esse algo existe. Escrever bem, como se diz, é realizar pela escrita um «bem» que aí se revela mas que está antes e depois disso em que se revela. Escreve-se bem com o espírito e a sensibilidade - não com um dicionário. Embora seja no dicionário que está toda a obra-prima. Como na pedra está toda a melhor escultura.
"
 

in 'Conta-Corrente 4'"


"Escreve! Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contensão beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir. Ela existe para os que não crêem, como expressão do sagrado sem divindade que a preencha. Como é que outros escrevem em agnosticismo da sensibilidade? Decerto eles o fazem sendo crentes como os crentes pelo acto extremo de o manifestarem. Eles captarão assim o poder da transfiguração e do incognoscível na execução fria do acto em que isso deveria ser. Escreve e não perguntes. Escreve para te doeres disso, de não saberes. E já houve resposta bastante."
 

in "Pensar"

3 comentários:

  1. Sou brasileira, neta de portugueses. Já li alguns livros do Vergílio Ferreira. Acho-o um escritor dos melhores que conheci. Dois de seus livros ficaram-me na memória: Aparição e Para Sempre. Tenho-os e nãos os empresto a ninguém. São sagrados.

    ResponderEliminar
  2. Olá Sónia. Compreendo bem o seu fascínio com Vergílio Ferreira. "Aparição" é muito a vida e o existencialismo. Por outro lado, "Para Sempre" é o outro extremo do espectro, um livro pessimista, negro, quase macabro, sobre a vida e onde ela se encontra com a morte. Não empreste mesmo - que, infelizmente, hoje em dia já ninguém respeita o devolver.

    ResponderEliminar
  3. Sou uma vergiliana. Desde a "Aparição" e fui por aí..."Alegria Breve", "Até ao Fim", "Para Sempre", "Manhã Submersa", "Mudança" e,mais recentemente, "Nítido Nulo". Não há nada que se assemelhe a este autor, é deveras único. Atrevo-me a dizer que é o nosso Sartre, exprimindo-se na beleza da língua portuguesa. Quanto mais obras leio, mais vontade tenho de o ler. É assim - a singularidade da existência.

    ResponderEliminar