sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Homenagem a F. Scott Fitzgerald

A poesia é qualquer coisa que vive como o fogo dentro de ti - como a música para o músico, ou o marxismo para o comunista.

Defendo a tese de que F. Scott Fitzgerald foi o prosador que mais bem se aproximou da poesia. Leio e releio os seus cinco romances (o último deles inacabado), os seus cento e cinquenta contos, a sua peça de teatro, as suas inúmeras cartas, crónicas, pequenos ensaios. Abro páginas ao acaso, ponho o dedo ao acaso na folha, escuto a frase, torço-a, espremo-a e dela destilo invariavelmente uma superlativa poesia. Impressionante como Fitzgerald nunca desliza, como a sua mão não treme, como a beleza da forma nunca se evola. Não por acaso Fitzgerald era devoto da poesia romântica inglesa e um estudioso de Keats, outro talento precoce.


O mais incrível é que muitos destes prodígios ocorreram quando Fitzgerald não tinha ainda trinta anos, um caso raríssimo na literatura. Claro que a época era outra. A cultura e a maturidade eram adquiridas mais cedo. Casava-se cedo, trabalhava-se cedo, ia-se para a guerra cedo, lia-se cedo, escrevia-se e publicava-se cedo, morria-se mais cedo. Quem ler uma biografia de Scott Fitzgerald perceberá que aos vinte e poucos anos, o que já lera, o que já vivera, o que já escrevera eram próprios de um adulto. Convicto de que morreria na guerra, Fitzgerald, sem tempo para rever o que escrevia, dedicou-se durante três meses ao seu primeiro romance Este Lado do Paraíso, para tentar deixar a sua marca no mundo. Atormentado pelo álcool, pela loucura de Zelda (seria a loucura de Zelda um motor do seu alcoolismo ou seria o seu alcoolismo um elemento deteriorador da condição de Zelda?), por ter de trabalhar por necessidade material na indústria de Hollywood, que desprezava, morreria após o segundo ataque cardíaco aos quarenta e quatro anos. Um pormenor desse dia que sempre achei curioso: pouco antes de morrer, estivera a recitar poesia entusiasmado em casa de uma amiga. Fitzgerald resumiu a sua vida como um conflito entre uma necessidade irreprimível de escrever e um conjunto de circunstâncias que procuraram, a todo o custo, demovê-lo desse propósito.


Pergunto-me que lugar alcançaria Fitzgerald, que ainda pretendia escrever um grande novela sobre a II Guerra Mundial, na história da literatura se a morte não o tivesse colhido tão cedo. Pergunto-me se O Último Magnata, uma extraordinária obra inacabada, publicada com os seus planos do livro (nos quais, vemos como é meticuloso o ofício do romancista), não teria hoje o sucesso de O Grande Gatbsy (publicado aos vinte e nove anos), se tivesse tido tempo para a concluir e aprimorar. Mas parece que o baú não acabou. Muito recentemente, apareceu o inédito Thank you for the light. Ainda assim, o lugar de Fitzgerald tem vindo a ser alcandorado após a sua morte, decénio após decénio. Até na Sétima Arte.



A obra, qualquer obra, vale sempre mais do que as suas interpretações. Não há trabalho de um crítico, por mais notável que seja, que chegue aos calcanhares da obra, qualquer que ela seja. O tempo o tem demonstrado. Deixo aqui excertos de Fitzgerald com o intuito de demonstrar a tese que defendi na primeira linha deste texto.


«O seu rosto, o rosto de uma jovem virginal, pairava fragilmente sobre a poeira etérea da tarde. [...] nem ele jamais tinha visto uma textura tão pálida e imaculada como a de sua pele, tão fulgente e vistosa como a dos seus olhos. [...] Mas ele estava gostando da humanidade naquela noite, sob o luar de Verão dos Borghese Gardens. A Lua parecia um ovo radiante, macio e suave como o rosto de Jenny Delehanty do outro lado da mesa, enquanto uma brisa salgada soprava de leve sobre as mansões da região, como que recolhendo o aroma das flores e depositando-o ali no relvado do restaurante.»


A Escada de Jacob


«Deve ter havido momentos, ainda nessa altura, em que Daisy não correspondeu inteiramente aos seus sonhos – não por culpa dela, mas devido à colossal vitalidade da própria ilusão dele, que tinha ultrapassado Daisy, e tudo o mais. Tinha-se lançado na ilusão com tal paixão criadora, que constantemente a acrescentava, ataviando-a de todas as plumas de cor que lhe aparecessem pelo caminho. Não há fogo nem frescura, por muito grandes que sejam, capazes de competir com os fantasmas que, no seu íntimo, um homem consegue armazenar. Quando me pus a observá-lo, recompôs-se um pouco, visivelmente. A sua mão apoderou-se da dela e quando ela lhe sussurrou qualquer coisa ao ouvido voltou-se para ela com um ímpeto de emoção. Acho que era a voz dela, com aquele calor febril e flutuante, o que mais o arrebatava, porque inexcedível pelos sonhos – aquela voz era uma canção imortal.»


O Grande Gatsby


«Ali estava ela – rosto, forma e sorriso contra a luz do interior. Era o rosto de Minna – a pele peculiarmente radiosa, como se tocada por uma fosforescência, a boca com as linhas quentes que nunca contabilizavam as perdas...» 
«O limpa-pára-brisas fazia tiquetaque domesticamente, como um relógio de pé. Viam-se carros amuados a deixar as praias molhadas e a regressar à cidade.»
«Era uma necessidade de tempo profunda e desesperada, um relógio a bater-lhe no coração, incitando-o, contra toda a lógica da sua vida, a entrar naquele momento e dizer: “Isto é para sempre.”»
«Katheleen esperou, ela própria irresoluta – gelo róseo e prateado, à espera de derreter na Primavera.»

O Último Magnata


« [...] a insónia de cada um de nós é tão diferente da do seu vizinho como as esperanças e as aspirações despertas. [...] como um arco de violino com a corda partida sobre o instrumento que freme, vejo o horror real que se alastra por sobre os telhados e nas buzinas estridentes dos táxis nocturnos e no som monótono dos noctívagos que voltam para casa. Horror e destruição...
... Destruição e horror: o que eu poderia ter sido e feito, e se perdeu, desperdiçou, dissipou e desapareceu, irrecuperável. Podia ter agido deste ou daquele modo, evitado isto ou aquilo, ter ousado quando temi, usado de cautela quando fui imprudente.
Não precisava de a ter ferido daquela maneira.
Nem de lhe ter dito aquilo, a ele.
Nem de me destruir tentando destruir o indestrutível.
O horror chega agora como uma tempestade – e se esta noite fosse uma antecipação da noite de depois da morte? E, se a partir daqui, tudo fosse um calafrio eterno à beira de um abismo, com toda a minha baixeza e desgraça próprias a empurrar-me e toda a baixeza e desgraça do mundo pela frente? Não há escolha, nem caminho, nem esperança – só a repetição incessante do sórdido e do semitrágico. Ou, talvez, tenha de permanecer para sempre no limiar da vida, incapaz de o transpor e de regressar. Agora sou um espectro, enquanto o relógio bate as quatro horas.
[...]
Irresistível, irisada, eis a Aurora, eis outro dia.»



Adormecer e Despertar


«As flores dos castanheiros pendiam sobre as mesas e caíam petulantes sobre a manteiga e o vinho. Julia Ross comeu algumas com o pão enquanto ouvia os peixes dourados ondulando na piscina e os pardais chilreando sobre uma mesa vazia. Podia-se ver todo o mundo ali de novo – os empregados com as suas caras profissionais; as francesas, cheias de olhos e bocas; Ohil Hoffmanm sentado à sua frente com o coração equilibrado num garfo [...]«Perdera a batalha contra a juventude e a Primavera, e, com o seu sofrimento, pagara um preço pelo pecado imperdoável da velhice – o de se recusar a morrer. Não se conformara em rumar para as trevas sem primeiro se pôr à prova; o que ele quisera, no fundo, era magoar o seu velho coração. A luta, em sim, tem um valor que supera a vitória ou a derrota, e aqueles três meses com Annie... agora, pertenciam-lhe para sempre.»

Na Sua Idade


«Na noite mais escura da alma, são sempre três horas da manhã.»
«Um mês bastou para outras coisas, como o ruído de um rádio, a publicidade nas revistas, o chiar dos carris, o silêncio mortal do campo, me encherem de azedume [...]
Reparei que a vitalidade é a força da natureza menos transmissível. No tempo em que eu rebentava de sumo e ela me invadia sem pedir licença, tentei distribuí-la - sem nunca ter tido êxito. [...] a vitalidade nunca «se pega». Existe ou não existe em nós, como a saúde, os olhos castanhos, a honra ou a voz de barítono. De nada valeria pedir-lhe para me dar alguma bem embalada, pronta a ser cozinhada e digerida em casa; nunca chegaria a tê-la – nem que passasse mil horas a agarrar na malga da auto-compaixão.»



The crack-up


«O que ele na realidade conseguia fazer com as palavras era impressionante, elas cintilavam e coruscavam — ele escrevia frases, parágrafos, capítulos que eram obras-primas de tessitura e cadência. 
Era um conto. Eu comecei-o num estado de espírito de repulsa, mas antes que tivesse lido cinco minutos eu estava completamente imerso nele, cabalmente encantado, totalmente convencido e pedindo a Deus que pudesse escrever assim. Quando o Cannon acabou o seu telefonema, eu mantive-o à espera até que acabasse o conto e quando o fiz havia lágrimas nestes velhos duros olhos profissionais. 
O que quer que seja que escreva será de uma brancura pura — da qual resultará um clarão encandeante.»

 
Financiando Finnegan


«Todo o tempo do mundo – a sua vida e a dela. Todavia, por um instante, ao beijá-la, soube que, mesmo que procurasse por toda a eternidade, nunca conseguiria recapturar aquelas horas perdidas de Abril. Podia apertá-la agora até os músculos se lhe enodoarem nos braços – ela era algo desejável e raro por que lutara e que fizera seu –, mas nunca mais um murmúrio intangível ao crepúsculo, ou na brisa da noite...
“Bem, paciência”, pensou ele, “Abril acabou, Abril acabou. Há todos os tipos de amor no mundo, mas nunca o mesmo amor duas vezes.”»


O mais Sensato


«The words thrilled Val. They had come into his mind sometime during the fresh gold April afternoon and he kept repeating them to himself over and over: “Love in the night; love in the night.” He tried them in three languages — Russian, French and English — and decided that they were best in English. In each language they meant a different sort of love and a different sort of night — the English night seemed the warmest and softest with a thinnest and most crystalline sprinkling of stars. The English love seemed the most fragile and romantic — a white dress and a dim face above it and eyes that were pools of light. And when I add that it was a French night he was thinking about, after all, I see I must go back and begin over. [...] But the question of love in the night was the thing nearest his heart. It was a vague pleasant dream he had, something that was going to happen to him some day that would be unique and incomparable. He could have told no more about it than that there was a lovely unknown girl concerned in it, and that it ought to take place beneath the Riviera moon. [...] Love went on around him — reproachless love and illicit love alike. As he strolled along the seaside promenade at nine o’clock, when the stars were bright enough to compete with the bright lamps, he was aware of love on every side. From the open-air cafés, vivid with dresses just down from Paris, came a sweet pungent odor of flowers and chartreuse and fresh black coffee and cigarettes — and mingled with them all he caught another scent, the mysterious thrilling scent of love. Hands touched jewel-sparkling hands upon the white tables. Gay dresses and white shirt fronts swayed together, and matches were held, trembling a little, for slow-lighting cigarettes. On the other side of the boulevard lovers less fashionable, young Frenchmen who worked in the stores of Cannes, sauntered with their fiancées under the dim trees, but Val’s young eyes seldom turned that way. The luxury of music and bright colors and low voices — they were all part of his dream. They were the essential trappings of Love in the night.»
 

Love in the Night

E deixo o melhor por descobrir. As duas últimas páginas de O Grande Gatsby.


Manuel Monteiro
*autor convidado esta semana pelo Clube de Leitores

1 comentário:

  1. Fitzgerald, entrar no miolo da alma e devolvê-lo em palavras... aos 30 anos... Milagres que um ser humano tece. Quanto às explicações anteriores, Manuel Monteiro já nós acostumou a esmiuçar comentários sobre alguns dos melhores escritores universais, tendo à proa Scott Fitzgerald e Bukoski, entre outros. – José Alberto Braga

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