terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Cronologia de um escritor

Os meus pais contam-me que quando tinha três anos só conseguia adormecer quando eles me liam histórias. A minha mãe diz-me que por vezes eu protestava: «A história não é assim. Já a tinhas lido antes e não é assim!» Explicar-me-ia mais tarde que, em certas noites, cansada, tentava abreviar e que eu a obrigava a lê-la tal qual estava no papel. O meu pai conta-me que eu adorava livros de pássaros e que só descansei quando os reconheci a todos pelo bico e pela plumagem. Parece que a seguir passei para as moedas. A literatura sempre foi para mim um suplemento de extra-realidade indispensável à vida.

Não consigo conceber a vida sem esses suplementos extras de realidade. E sempre vi na ficção um consolo, uma evasão sem a qual a vida seria tremendamente aborrecida. Claro que todos precisamos de escapismos, mas pessoalmente sempre vi na literatura o escape mais elevado – aquele que satisfazia a alma, que tangia qualquer coisa Transcendente. Como o corpo pede alimento e o alimento produz satisfação, o livro sempre me produziu a satisfação intelectual, a elevação do espírito. (Como é difícil comunicar estas coisas por palavras.)


Vivi o dia mais feliz da minha vida quando tinha sete anos. Lendo um livro de banda desenhada do Pato Donald, do Pateta, dos Irmãos Metralha, vi um concurso dos Sugus. Era preciso ordenar as vinhetas pela ordem certa e dar um título à história. Escrevi um título prolixo, enumerativo, que convocava as personagens e o acontecimento. Qualquer coisa como Os Meninos, o Não Sei Quantos, os Bombeiros e o Fogo (ou seria o Incêndio?).


Rapidamente, esqueci o assunto. Umas semanas mais tarde, ao sair para a escola com o meu pai, ele abre o correio e diz: «Esta carta é para ti.» Abri a carta. Não podia acreditar. O meu nome completo estava lá e eu fora premiado com um pequeno piano, ganhando o concurso. O meu nome estava ali, completo, e eu era digno de menção na próxima revista, eu era visível no mundo. Atingi a felicidade máxima que uma alma humana pode atingir. (E que, garanto-vos, não seria repetível nem com o Nobel.) Esse dia correu maravilhosamente, e essa semana e esse mês também. Havia uma nuvem mágica em cima da minha cabeça.


Desde esse dia, jurei que seria escritor.

Manuel Monteiro


4 comentários:

  1. Ótimo artigo! Muito legal a história!
    Concordo com você quando diz que é difícil expressar certos sentimentos com palavras, principalmente em relação à literatura. Às vezes penso: será que entenderão o que estou querendo dizer ou vão achar que estou doida?

    Sucessos pelo caminho!

    http://www.leiasempre.com/

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  2. Gosto de te ler .

    Muitas cartas para ti no correio.

    Manuela S. Paiva

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  3. A literatura é um milagre. Não desses que se inventam ou até talvez existam. Não. Trata-se de um milagre que acontece na cabeça e explode em palavras que se esvaem nos dedos e destes para a imaginação. Ou será ao contrário? As ideias surgem como malabaristas nos dedos, disparados por dentro do corpo pela tal cabeça indecifrável? Isto, aquilo ou aqueloutro?
    É dessa alquimia alucinante, alucinógena de que nos fala Manuel Monteiro. Quem escreve (e quer dizer alguma coisa que ultrapasse o horizonte), sabe! E sabe porque sabe, por o encadeamento das palavras viram o êxtase do Mundo quando a coisa acontece. Blow wind. Quem escreve e quer dizer alguma coisa que valha a pena sempre sabe para que lado sopra o vento.
    Acompanhe o vento e as palavras do Manuel Monteiro. Têm sempre o gosto do valer a pena.

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  4. Prémio Camões, não?:)
    Ideias, trabalho árduo e boa sorte, que é o que a nossa geração de escritores precisa. Abraço

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