segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

360 GrauS


O mundo dá uma volta de 360 graus quando nos morre um pai.
Sim, 360 graus, porque tudo igual, tudo na mesma.
Os teus pés no mesmo sítio.
O céu com nuvens ou sem nuvens.
O mar a Oeste.

E, no entanto, nada igual.

Tudo diferente.

Olhas para as tuas mãos e não as reconheces.
Os movimentos não são teus.
A carne não é tua.
Olhas para os teus olhos no espelho.
E não os teus olhos.

Tem os olhos verdes do pai.

E não tu atrás do teu nariz.

Tem o nariz do pai.

E perguntas-te onde estás.
E não sabes responder onde estás.

Apesar da tua casa, das portas, das janelas, de um vidro partido que há meses, dizes que tens de trocar, da cama no quarto, das chaves ao lado do telefone no móvel do corredor. Um móvel com um não sei quê de barco atracado no cais, por nunca assentar por completo no chão, ou uma das quatro pernas mais curta ou defeituoso o chão.

Desligaste o telefone.
Não sabes porque desligaste o telefone.

Não sabes o que fazer.

Fazes a barba.

Lembras-te do teu pai, o fantasma do teu pai ao teu lado, a explicar, a dar instruções, a demonstrar, o que fazer, como fazer. A sorrir.

O sorriso indestrutível do teu pai.

A cara branca do creme para barbear.
O sorriso branco.
O rosto, primeiro enviesado para a esquerda, a lâmina em sentido descendente, da orelha para o queixo, a sulcar o rosto como um arado a terra, a mão direita a agitar a gilete dentro da água no lavatório.
Depois, igual, repetes do outro lado.

A simetria assimétrica dos teus gestos no espelho.

Depois de queixo levantado, quase altivo, fazes ao contrário, fazes debaixo para cima, em sentido ascendente, assim vês, e por fim o bigode debaixo do nariz, recolhes os lábios para esticar a pele, assim, para evitar cortes, e outra vez a gilete de cima para baixo.

Tu, a imaginar um bigode que não existe.
Tu, a imitar-lhe os gestos perfeitos, de forma imperfeita.

Passas a cara por água, secas e, para terminar… o fantasma do teu pai a abrir a porta do móvel sobre o lavatório, a desaparecer do espelho, a voltar ao espelho depois de fechar a porta… um cheirinho!

O teu pai a agitar frasco, a trautear uma melodia.

Fazes um esforço, e não te consegues lembrar da música, apesar de sempre a mesma música.
A mão esquerda do teu pai, uma concha onde deposita um líquido espesso e branco, um líquido que cheira ao cheiro do teu pai, depois uma mão na outra, depois as duas mãos no rosto, paf, paf, duas palmadinhas sonoras e leves como borboletas.

Depois a tua mão em concha, as tuas mãos uma na outra, as tuas mãos no rosto.
Tu, a imitar-lhe os gestos perfeitos, de forma imperfeita.

E paf, paf, as mãos do teu pai na tua cara, sonoras e leves!
O sorriso do teu pai depois do gesto.
O teu sorriso em consequência.
As tuas mãos na tua cara, paf, paf.
E não um sorriso em consequência.
Os teus olhos no espelho.
Os teus olhos no espelho cheios de água.


1 comentário:

  1. António Tété pereira11 de dezembro de 2012 às 11:37

    O ritual do "desfazer" da barba é algo que, diáriamente, me incomoda, quase pela sua inutilidade repetitiva; as barbas tinham concerteza uma função no nosso processo evolutivo...já não se me afigura que o tenha o contínuo escanhoar da face...que, assim, se tem de entender como uma excrescência cultural...também recordo o meu pai, que a desfazia no barbeiro e não com as tecnologias, de que, hoje, me sirvo; contudo, a questão, que sempre me ponho é que se não fizer o "esgar" apropriado, a coisa não dá certo e o golpe surge...também, na vida, assim é!

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