O mundo dá uma
volta de 360 graus quando nos morre um pai.
Sim, 360 graus,
porque tudo igual, tudo na mesma.
Os teus pés no
mesmo sítio.
O céu com nuvens
ou sem nuvens.
O mar a Oeste.
E, no entanto,
nada igual.
Tudo diferente.
Olhas para as
tuas mãos e não as reconheces.
Os movimentos
não são teus.
A carne não é
tua.
Olhas para os
teus olhos no espelho.
E não os teus
olhos.
Tem os olhos verdes do pai.
E não tu atrás
do teu nariz.
Tem o nariz do pai.
E perguntas-te
onde estás.
E não sabes responder
onde estás.
Apesar da tua
casa, das portas, das janelas, de um vidro partido que há meses, dizes que tens
de trocar, da cama no quarto, das chaves ao lado do telefone no móvel do
corredor. Um móvel com um não sei quê de barco atracado no cais, por nunca assentar
por completo no chão, ou uma das quatro pernas mais curta ou defeituoso o chão.
Desligaste o
telefone.
Não sabes porque
desligaste o telefone.
Não sabes o que
fazer.
Fazes a barba.
Lembras-te do
teu pai, o fantasma do teu pai ao teu lado, a explicar, a dar instruções, a
demonstrar, o que fazer, como fazer. A sorrir.
O
sorriso indestrutível do teu pai.
A cara branca do
creme para barbear.
O sorriso
branco.
O rosto,
primeiro enviesado para a esquerda, a lâmina em sentido descendente, da orelha
para o queixo, a sulcar o rosto como um arado a terra, a mão direita a agitar a
gilete dentro da água no lavatório.
Depois, igual, repetes
do outro lado.
A simetria
assimétrica dos teus gestos no espelho.
Depois de queixo
levantado, quase altivo, fazes ao contrário, fazes debaixo para cima, em
sentido ascendente, assim vês, e por fim o bigode debaixo do nariz, recolhes os
lábios para esticar a pele, assim, para evitar cortes, e outra vez a gilete de cima para baixo.
Tu, a imaginar
um bigode que não existe.
Tu, a imitar-lhe
os gestos perfeitos, de forma imperfeita.
Passas a cara
por água, secas e, para terminar… o fantasma do teu pai a abrir a porta do
móvel sobre o lavatório, a desaparecer do espelho, a voltar ao espelho depois de
fechar a porta… um cheirinho!
O teu pai a agitar frasco, a trautear uma
melodia.
Fazes um esforço, e não te consegues lembrar da música, apesar de
sempre a mesma música.
A mão esquerda do teu pai, uma concha onde deposita um
líquido espesso e branco, um líquido que cheira ao cheiro do teu pai, depois
uma mão na outra, depois as duas mãos no rosto, paf, paf, duas palmadinhas
sonoras e leves como borboletas.
Depois a tua mão
em concha, as tuas mãos uma na outra, as tuas mãos no rosto.
Tu, a imitar-lhe
os gestos perfeitos, de forma imperfeita.
E paf, paf, as
mãos do teu pai na tua cara, sonoras e leves!
O sorriso do teu
pai depois do gesto.
O teu sorriso em
consequência.
As tuas mãos na
tua cara, paf, paf.
E não um sorriso
em consequência.
Os teus olhos no
espelho.
Os teus olhos no
espelho cheios de água.
O ritual do "desfazer" da barba é algo que, diáriamente, me incomoda, quase pela sua inutilidade repetitiva; as barbas tinham concerteza uma função no nosso processo evolutivo...já não se me afigura que o tenha o contínuo escanhoar da face...que, assim, se tem de entender como uma excrescência cultural...também recordo o meu pai, que a desfazia no barbeiro e não com as tecnologias, de que, hoje, me sirvo; contudo, a questão, que sempre me ponho é que se não fizer o "esgar" apropriado, a coisa não dá certo e o golpe surge...também, na vida, assim é!
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