quinta-feira, 8 de novembro de 2012

desenhOS cegOS


- Desenhos cegos.
Se me fizessem perguntas, sobre ela, sobre a forma como levava a sua vida.
Como se as vidas fossem malas de mão, coisas de levar e trazer, de pôr e tirar.
Acho que seria essa a minha resposta.
- Desenhos cegos.
Sim, eu explico, são desenhos que resultam de se olhar o tempo inteiro para o objecto em reprodução e nunca para o papel.
Ela era assim, nunca olhava para o papel, eram-lhe indiferentes os resultados dos gestos.
E não era egoísmo.
Não era egoísta.
Talvez uma mistura de ingenuidade e transparência, talvez de boa vontade e urgência.
Tinha:
A ingenuidade dos crédulos.
A transparência dos puros.
A boa vontade dos condescendentes.
A urgência dos que perceberam prematuramente da brevidade da vida.
Assim, levava a vida a correr, um cavalo de corrida, ansioso, não pela meta mas pela próxima volta, como se a próxima volta a última volta.
Motivo porque lhe chamavam leviana.

Leviana... leve... leva... ligeira… corria... voava…ávida… alvoraçada… ansiosa...

Mesmo motivo porque, para mim, foi a pessoa mais consciente de si e de tudo o que fazia que conheci.
Era exemplar.
Põe quanto és no mínimo que fazes, quando escreveu isto, sem saber, sequer suspeitar, Ricardo Reis, escreveu sobre ela.
O verso assenta-lhe como uma luva.
Nunca a vi de luvas.
Apesar das mãos, sempre frias.
Talvez, o Poeta, talvez?, de certeza!, tivesse gostado de a conhecer.
Não é difícil imaginá-los, um fim de noite de Verão, um amanhecer, um passeio à beira mar numa qualquer praia do tal país abençoado por Deus e bonito por natureza, o Dr. Ricardo Reis de smoking, o laço já desfeito, dois botões desapertados, ela de vestido de noite, as costas nuas, perfeitas, tudo nela merece um poema, o vestido obviamente verde, escuro, a sua cor preferida, abusava do verde, abusava de tudo o que gostava, os sapatos de salto a baloiçar de forma negligente presos por um dedo da mão direita, e os dois leves, levianos, trôpegos, vagamente ébrios, felizes, a discutir efeitos e consequências da luz da lua sobre os movimentos circulares entre aurículas e ventrículos, sustentando a tese, por analogia, com os demonstrados efeitos da lua sobre as marés.
Como se a lua uma estrela.
Como se não um planeta.
Como se não fosse suficiente a poesia.
 
Raquel Serejo Martins




Sem comentários:

Enviar um comentário