quarta-feira, 10 de outubro de 2012

1º Parágrafo: Gente Feliz com Lágrimas


Com excepção dos nomes e das cores, que se haviam delido no tempo, seriam apenas os barcos – os mesmos desse dia feliz em que papá decidira levá-la a vê-los de perto pela primeira vez. Porque lá estavam ainda, emborcados por cima do convés, os mesmos escaleres cobertos pelas lonas. Estavam as torres, as vigias redondas como olhos de peixe e as mesmas bóias ressequidas, presas dos ganchos. Quando largaram da doca – e o focinho cortante das proas rasgou o pano azul das águas atlânticas, rumo a Lisboa – havia também a mesma chuva ácida do princípio da noite. Além disso, dera-se a chegada das mesmíssimas vacas ao cais de embarque, sendo elas destinadas aos matadouros continentais. E o pranto da muita gente que ali ficou a agitar lencinhos de adeus fora-se logo convertendo num uivo, o qual acabou por confundir-se com o rumor do vento a alto mar.


* João de Melo nasceu em 1949, na Achadinha, na ilha de São Miguel, arquipélago dos Açores.
* Esteve na guerra do Ultramar entre 1971 e 1974.

1 comentário:

  1. A partir daqui, só melhora. Para mim, um dos mais belos livros da literatura portuguesa.

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