A madrugada daquele domingo, tantos de Outubro, foi de milagres,
maravilhas e surpresas, embora tivesse havido, como sempre, desacordo entre
testemunhas e testemunhos. Mais exacto seria, certamente, dizer que toda a
gente falou deles, ainda que ninguém os tivesse visto; mas, como a exactidão é
impossível, mais vale deixar as coisas como as contam e contarão: foi a cova da
rua do Pez, que ficou à vista do mundo durante todo o dia, e o povo acorreu a
vê-la e cheirá-la como se fosse a abada. O caso, segundo se relata, foi, por
exemplo, assim: uma velha, de madrugada, viu sair uma víbora de debaixo de uma
pedra: a víbora desatou a correr para baixo como podia ter desatado a correr
para cima; mas o que viu o correeiro da Rua de São Roque já não foi uma víbora,
mas sim uma cobra de razoável tamanho, que também desatou a correr para cima ou
para baixo, a direcção não consta. A beata que saía de São Ginés, de ouvir a
missa da alba, viu um verdadeiro cobrão que, esse sim, ia a caminho do Paço,
mais coisa menos coisa; e, finalmente, alguém da Guarda Valona que ia para o
serviço ou vinha dele (isto não é muito preciso), o que pôde contemplar,
atónito ou esbugalhado, foi uma gigantesca boa que rodeava o Paço, pela parte
que assenta na terra ou confina com ela, e parecia apertar o edifício com ganas
de o derrubar, ou pelo menos de o espremer, o que parece mais verosímil, pelo
menos do ponto de vista da semântica. O guarda valão começou aos gritos na sua
língua, mas, como ninguém o entendia, deu tempo a que a gigantesca serpente
desistisse do seu propósito, pelo menos aparentemente, e se escapulisse com
espantosa mansidão para o Campo del Moro, onde foi procurada em vão durante
toda a manhã por equipas de peritos que se revezavam de hora a hora. A história
do tesouro de moedas antigas atribuiu-se à sorte de um catraio, mas havia
algumas variantes na localização do achado: segundo uns, fora da Portela de
Embaixadores, conforme se sai, à direita; segundo outros, à saída da Porta de
Toledo, segundo se sai, à esquerda. Nem o tesouro nem o catraio foram
encontrados.
* Tradução de
António Gonçalves
* Nasceu em
Serantes, Ferrol, Curunha, a 13 de Junho de 1910
* Míope, o
que o impediu fazer carreira na Marinha de Guerra, cursou Direito, licenciou-se
em história pela Universidade de Santiago.
* Em 1975 foi
nomeado membro da Real Academia Espanhola e em 1976 foi galardoado com o Prémio
Cervantes
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