segunda-feira, 8 de outubro de 2012

1º Parágrafo: Crónica do Rei Pasmado


A madrugada daquele domingo, tantos de Outubro, foi de milagres, maravilhas e surpresas, embora tivesse havido, como sempre, desacordo entre testemunhas e testemunhos. Mais exacto seria, certamente, dizer que toda a gente falou deles, ainda que ninguém os tivesse visto; mas, como a exactidão é impossível, mais vale deixar as coisas como as contam e contarão: foi a cova da rua do Pez, que ficou à vista do mundo durante todo o dia, e o povo acorreu a vê-la e cheirá-la como se fosse a abada. O caso, segundo se relata, foi, por exemplo, assim: uma velha, de madrugada, viu sair uma víbora de debaixo de uma pedra: a víbora desatou a correr para baixo como podia ter desatado a correr para cima; mas o que viu o correeiro da Rua de São Roque já não foi uma víbora, mas sim uma cobra de razoável tamanho, que também desatou a correr para cima ou para baixo, a direcção não consta. A beata que saía de São Ginés, de ouvir a missa da alba, viu um verdadeiro cobrão que, esse sim, ia a caminho do Paço, mais coisa menos coisa; e, finalmente, alguém da Guarda Valona que ia para o serviço ou vinha dele (isto não é muito preciso), o que pôde contemplar, atónito ou esbugalhado, foi uma gigantesca boa que rodeava o Paço, pela parte que assenta na terra ou confina com ela, e parecia apertar o edifício com ganas de o derrubar, ou pelo menos de o espremer, o que parece mais verosímil, pelo menos do ponto de vista da semântica. O guarda valão começou aos gritos na sua língua, mas, como ninguém o entendia, deu tempo a que a gigantesca serpente desistisse do seu propósito, pelo menos aparentemente, e se escapulisse com espantosa mansidão para o Campo del Moro, onde foi procurada em vão durante toda a manhã por equipas de peritos que se revezavam de hora a hora. A história do tesouro de moedas antigas atribuiu-se à sorte de um catraio, mas havia algumas variantes na localização do achado: segundo uns, fora da Portela de Embaixadores, conforme se sai, à direita; segundo outros, à saída da Porta de Toledo, segundo se sai, à esquerda. Nem o tesouro nem o catraio foram encontrados.




* Tradução de António Gonçalves
* Nasceu em Serantes, Ferrol, Curunha, a 13 de Junho de 1910
* Míope, o que o impediu fazer carreira na Marinha de Guerra, cursou Direito, licenciou-se em história pela Universidade de Santiago.
* Em 1975 foi nomeado membro da Real Academia Espanhola e em 1976 foi galardoado com o Prémio Cervantes

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