sábado, 1 de setembro de 2012

Para quê apagar as velas? 70 anos de António Lobo Antunes

As tuas palavras permanecem eternas no nosso blog. E, no dia dos teus 70 anos, celebramos com elas. Parabéns António Lobo Antunes. Para quê apagar as velas? Fiquemos com a escrita. As velas apagam-se, as palavras não.


"a solidão possui o gosto azedo do álcool sem amigos, bebido pelo gargalo, encostado ao zinco do lava-loiças". - in Memória de Elefante

"O hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:
- A quotazinha da Sociedade, senhor doutor." - Primeiro Parágrafo de Memória de Elefante

"… que a multazinha deve ser paga em selos fiscais na esquadra de Santa Marta, um andar decrépito cheirando não sei porquê a almôndegas com puré de batata, onde dúzias e dúzias de polícias, sentados em carteiras escolares, tocam máquinas de escrever com um único dedo hesitante, receosos das palmatoadas do mestre-escola invisível." - in Isto


"A vida é uma pilha de pratos a caírem no chão. Vai a gente muito devagar da sala à cozinha, com aquela loiça toda de dias, de semanas, de meses em equilíbrio uns sobre os outros, a tilintarem e a tremerem, mais dúzias de garfos e facas escorregando lá de cima, no meio dos restos de comida e dos restos de infância, de espinhas de peixe de pequenas mentiras e de folhas de alface de domingos felizes, e nisto, sabe-se lá porquê, os anos entortam-se, uma saudade escorrega, a minha mãe, muito nova, escapa-se-me das mãos, e atrás da minha mãe os anos da tropa, o liceu, a esposa do farmacêutico a chamar-me do primeiro andar e eu com medo, vai a gente com aquela loiça toda, cada vez mais precária, mais vacilante, mais oblíqua a morte da minha avó por exemplo, o dentista que se enganou no molar e a meio do corredor ou então já na cozinha, já com a bancada à vista, já pensamos nós a salvo, os dias, as semanas, os meses deslizam uns a seguir aos outros, devagar primeiro, depressa depois, tudo junto por fim, e eis a vida em cacos no linóleo, um único pires completo e o resto bocadinhos, o único pires completo é alguém que não distingo a dizer-me adeus de uma varanda ou assim, um parapeito com sardinheiras, julgo que o mar ao longe, o único pires completo sou eu de bicicleta a voltar para casa." - in Minuete do senhor de meia idade

"...embora haja momentos, eu cá me entendo, em que ao meter o prato na máquina penso que, penso que gostava de companhia, isto é o prato gostava de companhia que se nota pelo modo como pinga, eu não preciso, cavalos e cavalos entre as roseiras, quando me levavam à praia imaginava-os na linha das ondas fazendo sobra no mar, lá estava a sombra mais densa que as algas, não navios, não penedos, não pássaros, cavalos, o cavalo do meu pai com a aba do chapéu a escondê-lo e a seguir eu na garupa a agarrar-lhe o casaco hesitando se o meu pai o cavalo ou a pessoa, na dúvida de quem era filha." - In Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?



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