segunda-feira, 10 de setembro de 2012

o Senhor MendeS

No mês, Fevereiro, em que fez 78 anos, o senhor Mendes, engraxador na Rua do Carmo desde os 12 anos, regressou à sua aldeia em Trás-os-Montes.
E não era a mesma aldeia, as casas desbotadas, os telhados desdentados, os vasos nas varandas vazios, as tílias no Largo secas e mirradas.

Não era o mesmo senhor Mendes, antes um menino moncoso e de pés descalços, agora um senhor de chapéu de velcro e sapatos irrepreensivelmente engraxados.

Continuando, no mês, Fevereiro, em que fez 78 anos, o senhor Mendes, engraxador na Rua do Carmo desde os 12 anos, regressou à sua aldeia em Trás-os-Montes e concretizou um sonho antigo: abriu uma livraria.

Uma livraria pequena no rés-do-chão da casa que herdou do pai.
O pai que o mandou servir para Lisboa, “Onde fica Lisboa?”, para o proteger da fome e do frio, “Vai para tão longe o menino!”, “Da fome e do frio quanto mais longe melhor.”
Uma livraria: duas paredes forradas a estantes, as estantes cheias de livros e, na montra, os livros que o senhor Mendes mais gostava.
Vários Camilos, um Calvino, um Pavese, lembrou-se que, se fosse vivo o Pavese teria a sua idade, um Dario Fo, um Tolstoi, tinha que ter um Tolstoi, mais os dois que acabou de ler, um Tabucchi, “Definitivamente gosta de italianos.” pensou, e um português, “Como se chama?”, um sujeito médico de profissão, a exercer no Miguel Bombarda, um livro de que muito gostou, apesar do título, em referência explícita e directa aos fundilhos do discípulo que por trinta moedas de prata entregou o criador aos bandidos.
Há pessoas que simplesmente não têm qualquer jeito para o negócio.
No mês, Fevereiro, em que o senhor Mendes fez 78 anos, foi a primeira vez que o Pedro, já com 17 anos, viu uma montra cheia de livros, uma livraria.
Antes apenas os livros da escola, da escola primária, não mais e não toda, até à terceira classe, e não feita, livros que de pouco lhe serviram pois, o pouco que aprendeu já desaprendeu.
Assinava o nome, primeiro e último, em bom rigor, desenhava o nome, não sabia desenhar, de resto, mal sabia ler e escrever, e as contas, para lá das centenas, outra aflição.
Passaram seis meses e o senhor Mendes não vendeu um único livro.
Passaram seis meses, em que todos os dias o Pedro passou pela montra da livraria à procura de livros novos. Procurava-os não pelo título ou pelo autor, que por mal saber ler não se esforçava por ler, mas pelas capas que o faziam viajar e supor histórias.
Sabia que os livros tinham histórias dentro.

Todavia, o tempo pode mudar mas não parar.

Passaram mais seis meses e o senhor Mendes sem vender livro nenhum.
Tudo somado passou um ano, o senhor Mendes agora com 79 anos, “Se o Pavese fosse vivo teriam a mesma idade.”,  79 anos e, há falta de mulher que o apoquentasse e lhe mostrasse os defeitos da sua situação, começou o senhor Mendes a moer-se a si próprio.
A pensar no que deveria fazer para remediar a situação, apesar da situação lhe agradar. Agradava-lhe o passar os dias rodeado de livros, o ter já dois gatos, o Camões e o Torga, por companhia e há dois meses um ajudante.
E não é que precisasse de ajuda, era que, apesar das arrelias, gostava das tardes na companhia do rapaz.
E o rapaz tem as tardes desocupadas porque as noites são os seus dias de trabalho e as manhãs as suas noites de sono, é padeiro.
O mesmo rapaz que pontual como as Avé Marias do sino da Igreja (não são pontuais, estão doze minutos atrasadas, mas é o sino da aldeia que marca as horas na aldeia, pelo que as televisões da aldeia perdem sempre os primeiros doze minutos do telejornal), todos os dias, cinco minutos, parava para apreciar os livros na montra.
O senhor Mendes não demorou cinco minutos para perceber que o rapaz, um homem feito, mal sabia ler.
Como um Quixote, namorou-o todo o Verão, e nem uma vez, apesar de todos os dias um convite, o Pedro entrou na livraria.
Perceber-lhe o medo atiçou-lhe a vontade.
Apresentou-lhe personagens, a Bovary do Flaubert, a Gabriela e a Dona Flor do Amado, o Velho do Hemingway, a Karenina do Tolstoi, a baleia do Melville, o Huckleberry Finn do Twain, o Ega do Eça, a Brísida do Vicente, a Gertrudes do Hesse, o Mr. Darcy da Austen.
Apresentou-lhe os autores, contou-lhe feitos as fraquezas, o Hemingway que combateu contra os franquistas, o mesmo Ernesto que com um fuzil de caça terminou com a própria vida, o Byron que tinha um pé torto, apesar de ninguém saber dizer se o direito, se o esquerdo, o Amado que gostava de bolas de Berlim, mas não umas bolas quaisquer, as bolas do Natário, um café sito em Viana do Castelo, que assim ganhou fama e mais proveito.
O Pedro encantado e relutante mantinha-se, como árvore ou arbusto, não planta dentro de vaso à qual escolhemos janela ou varanda, do lado de fora da porta da livraria, pelo que, chegado Agosto, o senhor Mendes viu-se obrigado a comprar um chapéu, uma palhinha que lhe protegesse a moleirinha da torridez solar para manutenção diária das conversas.
Até que um dia de Outono já com um frio de Inverno, o senhor Mendes resoluto, decidiu que não arriscava uma gripe por causa do rapaz e pensou, mudando de táctica contra o cagaço, bagaço!
A frase era do pai, e fazia parte do diminuto espólio de memórias que guardava do pai, memórias que se reduzem a meia dúzia de gestos e frases, lapidares como provérbios, e não provérbios, por vezes quase o contrário de provérbios, mas de múltipla aplicação, pelo menos o pai assim as aplicava.

No inferno não encontramos contrabandistas.
Aos mortos não é preciso tirar medidas.
Burro só é velho quando pára de aprender línguas.
Só quem se deita na cama conhece a escuridão do quarto.
Os olhos são as candeias do corpo e alumiam duas vezes.
Nem todas as mãos dominam a arte de arrombar portas. Quem diz portas, diz janelas, diz ouvidos, estômagos ou corações.
Só se as andorinhas regressarem no natal, é que podem dizer que o mundo ficou de patas para o ar.

O pai a chegar a casa depois de um dia de campo de sol a sol, a livrar a burra dos arreios, a afagar-lhe o lombo, a chegar-lhe um balde com água fresca.

E agora nem pai nem burra nem nada.

O senhor Mendes espantou os maus pensamentos, repetindo a estratégia, contra o cagaço, bagaço, e um dia de Outono já com um frio de Inverno, foi o primeiro dia do Pedro dentro da livraria, uma vez que, incapaz de recusar o convite para partilhar um copo, entrou vencido.
Ao segundo bagaço, já embalado, o senhor Mendes contou-lhe a história da sua vida.
Não havia muito para contar.
Engraxador desde os doze anos, portanto 66 anos a engraxar sapatos, a dúzia e meia de sapatos por dia, um ano tem 365 dias, pelo que dá, dá, dá 433.620 pares de sapatos.
O Pedro deslumbrado, apesar de, deslumbrado com qualquer número que resultasse dos cálculos do senhor Mendes, porque para si, qualquer um válido.
Contou-lhe porque não casou e, com sinceridade disse, falta de vontade e paciência. A paciência roubou-lha toda uma primeira namorada da qual já não se lembra o nome, uma paciência consumida em milhares de horas, minutos, segundos, que não foram milhares, mas que hoje lhe parecem milhões, milhões de segundos à espera, não se lembra de quê, e dois beijos sumidos que não sabe se deve ou pode classificar como beijos. Uma namorada que o deixou porque um sujeito bem menos paciente, a engravidou em menos de uma lua. À data ainda pensou, como bom trasmontano, limpar-lhe o sebo, hoje ri-se do facto, da afoiteza, da ingenuidade simples de ter pensado no gesto.
Depois da rapariga sem nome, “Como é que ela se chamava mesmo?, Aida, Adília, Adélia?”, veio a Efigénia, uma puta do Cais do Sodré mais conhecida que as putas, um doce de senhora, com um grau de transparência e ingenuidade inesperado, que lhe resolveu as primeiras núpcias e todas as que se seguiram, porque não conheceu outra mulher.
E a vida não era má, o clima de Lisboa bom, o comboio para Caxias, a casita, os sapatos para engraxar, livros para ler, a Efigénia.
A primeira vez que teve um livro nas mãos, Os Fidalgos da Casa Mourisca.
Anda à porta da pensão com Efigénia, o cliente seguinte do mesmo quarto, com o qual se cruzou nas escadas, a entregar-lhe o livro deixado perdido na mesinha da cabeceira.
O livro é seu?
Pode ser. – Respondeu. Enfiando-o no bolso do casaco.
Em bom rigor o senhor Mendes, já com 17 anos feitos, mal sabia ler, mas depois do esforço e dedicação, da muita curiosidade por desvendar as linhas, não pensava nas palavras, pensava nas linhas, aprendeu a ler, e a leitura transformou-se em vício.
Que há quem os tenha para todos os gostos, beber, fumar, jogar, mulheres, cavalos, carros, berlindes, alfinetes e até sapatos.
Tive um cliente que engraxava todos os dias a quem, em mais de 50 anos, nunca viu um par de sapatos repetidos!
Depois a Efigénia morreu.
Não o devia dizer, mas chorei-a mais do que à minha mãezinha.
Também pudera, se saí de casa com 12 anos e depois disso não a vi uma dúzia de vezes.
Isto é o que tem de bom ser velho, podemos dizer o que nos apetece.
A gaita é que é a única coisa que tem de bom ser velho, mais nada.
E pronto, depois da Efigénia não havia mais para contar, assim não contou da resolução solitária das necessidades do corpo, de uma operação ao apêndice, da diabetes, das cataratas nos olhos.
Depois o Pedro contou que era filho e neto e provavelmente bisneto e trineto de padeiros.
Que deixou a escola em evasão, em fuga, do tamanho, do comprimento, do volume, da espessura, da consistência do terror que se vivia dentro das quatro paredes da sala de aula.
Todos os motivos serviam para justificar uma falta.
À data dispunha de várias técnicas que em menos de trinta segundos colocavam um termómetro nos 39, 40 graus Celsius.
Tudo por causa da bate-chapas, a professora que metodicamente o atormentou durante os cinco anos de escola primária, os mesmos cinco anos que não foram suficientes para concluir a terceira classe.
Não explicou porque é que lhe chamavam bate-chapas, por lhe parecer ser óbvia a dedução.
E de amores?
O Pedro corou.
Corou e pensou que o tema não servia para conversa de machos, mas como o senhor Mendes tinha idade para ser seu avô, ou isso ou o quarto bagaço, respondeu.
Quem eu quero não me quer.
Quer dizer, acho que gosto da nova professora primária, quanto mais a afasto dos pensamentos mais a penso, já viu a minha sorte, eu embeiçado pela substituta da bate-chapas.
E porque é que não a convidas para um passeio, depois um lanche. Bolo de chocolate, não conheço rapariga que não goste.
Era só o que me faltava.
Porque não Pedro?
Porque não.
O senhor Mendes percebeu que estava a enfiar o dedo na ferida e, para não escarafunchar, mudou de assunto.
E assunto foi coisa que não lhes faltou, uma vez que a conversa durou até de madrugada, durou até que o Pedro percebeu que tinha faltado ao trabalho, e cheio de pressa para levar um raspanete do pai, despediu-se do senhor Mendes.

No dia seguinte, pontual como as Avé Marias do sino da Igreja (não são pontuais, estão doze minutos atrasadas), o Pedro em frente à montra da livraria.
O senhor Mendes não à porta, dentro da livraria, atento aos pés e aos passos do Pedro, e o Pedro a entrar na livraria, sem ser empurrado nem precisar de convite.
O mesmo dia em que o senhor Mendes contratou os serviços do Pedro.
Do contrato, verbal, constavam apenas três cláusulas:
Que era da sua obrigação manter as estantes limpas e arrumadas.
Que, derivado das cataratas do senhor Mendes, tinha que proceder todos os dias, pelo período mínimo de quarenta minutos, à leitura de contos, novelas, romances, ensaios, autos, odes, poemas, jornais, almanaques e etc.
Que aos Sábados, porque os Domingos não eram dia de pão fresco, tinha que lhe fazer companhia em dois bagaços, três se dia de festa.
E assim passaram quatro estações.
O senhor Mendes fez 80 anos, “Se o Pavese fosse vivo teriam a mesma idade.”
Quatro estações, um ano.
Um ano, no fim do qual, o senhor Mendes a vender o oitavo livro.
O Pedro a comprar, pela primeira vez, um livro.
Um livro para oferecer.
Para oferecer à primeira pessoa por quem se apaixonou.
Tudo novo.
No mesmo dia, a substituta da bate-chapas, já agora, de nome Cecília, depois do lanche, bolo de chocolate, recebeu um livro, um Camilo, sugestão do senhor Mendes, infalível para inflamar paixões, disse enquanto piscava um olho.
E Cecília, a substituta da bata-chapas quase chorou, porque foi a primeira vez que lhe ofereceram um livro, para mais embrulhado em papel de cetim e com uma fita vermelha.
 
Raquel Serejo Martins




3 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigada por se ter dado ao trabalho de me ler e de dar feed-back :)

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  2. "Senhor engenheiro, engraxa?
    Engraxo na baixa"
    Roubado ao Alexandre O.
    Quando o médico aconselhou o meu tio a deixar de beber ele dise - "mas então como é que eu me aguento a trabalhar se não beber?"
    Lia Junqueiro e não conheceu o senhor Mendes.
    Leonel

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