quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O meu livreiro fica do outro lado do Atlântico


84 Charing Cross Road: a morada da livraria Marks & Co. em Londres.
14 East 95th St.: a morada da cliente em Nova Iorque.
5 de Outubro de 1949, o dia da primeira carta, a forma como tudo começou:

“Caros senhores,
O vosso anúncio, no Saturday Review of Literature, diz que se especializam em livros que deixaram de ser editados.”
A cliente: Helene Hanff
O livreiro: Frank Doel

O livro é uma compilação de epístolas entre livreiro e cliente entre Outubro de 1949 e Outubro de 1969, e no entanto é tanto mais do que isso, porque nos dá o privilégio de ver uma amizade em construção, e até aprender, eu mais uma vez percebi o quão imprescindível é o sentido de humor na construção.
“(Parece-me ridículo continuar a escrever “Caros senhores” quando é óbvio que é sempre a mesma alma solitária a tratar dos meus assuntos.)”

Depois a curiosidade, qual será o cor dos olhos, como o tom de voz.
“... diga-lhe que sou tão pouco estudiosa que nem fui para a faculdade. Simplesmente possuo um gosto muito peculiar por livros, graças a um professor catedrático de Cambridge conhecido como Q., que conheci numa biblioteca quando tinha dezassete anos. E tenho um ar tão inteligente como um mendigo da avenida da Broadway. Vivo dentro de camisolões comidos pelas traças e calças de lã, porque aqui não há aquecimento durante o dia. É um prédio castanho de cinco andares, e todos os outros inquilinos vão para o trabalho às 9h e só voltam às 18h... E porque haveria o senhorio de ligar o aquecimento de edifício por uma pequena escritora/leitora de guiões que trabalha na casa do rés-do-chão?”

A fidelidade:
“Envie também o Oxford Verse, por favor. Nunca ponha em hipótese se já encontrei alguma coisa em qualquer lado, já nem procuro nada onde quer que seja. Porque hei-de fazer o caminho todo até à 17th St. para comprar livros sujos e mal feitos se posso comprar exemplares limpos e bonitos na vossa loja sem deixar a minha máquina de escrever? Em relação à cadeira onde me sento, Londres é bem mais perto do que a 17th St.”

As coincidências:
“Obrigada pelo livro lindo. Nunca antes tive um livro com as páginas debruadas a ouro a toda a volta. Acreditam que chegou no dia do meu aniversário?”
Os planos de uma viagem, de um encontro.
No entretanto a amiga que passa por Londres e lhe dá nota da visita à livraria e ao seu livreiro:
“É uma loja antiga muito querida saída de um livro de Dickens, irias ficar doida por ela. Há bancas à porta e eu parei e folheei algumas coisas para me mostrar interessada antes de entrar e explorar. Lá dentro, é um pouco escuro, cheiras a loja antes de a ver, é um cheiro muito agradável, não consigo explicar muito bem, mas combina bafio e pó e idade, e paredes de madeira e chão de madeira. (...) As prateleiras nunca mais acabam. Chegam ao teto e são muito velhas e cinzentas, como o carvalho antigo que absorveu tanto pó ao longo dos anos que perdeu a sua verdadeira cor. (...) Fiquei cerca de meia hora na esperança de que o teu Frank ou alguma das raparigas aparecessem, mas eu cheguei por volta da uma, suponho que estavam todos a almoçar e eu não podia ficar mais tempo.”

As confidências:
“Limpo os meus livros todas as primaveras e deito fora aqueles que nunca lerei outra vez, tal como deito fora as roupas que nunca vestirei outra vez. Isto choca toda a gente. Os meus amigos são muito estranhos com os livros. Leem todos os best-sellers, terminam-nos o mais rápido possível, acho que saltam muitas partes. E NUNCA leem nada duas vezes, por isso não se lembram de uma única palavra no ano seguinte. Mas ficam profundamente chocados se me veem deitar um livro no lixo ou dá-lo. Da forma que eles veem as coisas, compramos um livro, lemo-lo, pomo-lo na prateleira, nunca mais o abrimos no resto da vida e NÃO O DEITAMOS FORA! SE FOR DE CAPA DURA, NEM PENSAR! Porque não? Pessoalmente não consigo pensar em nada menos sacrossanto do que um livro mau ou mesmo medíocre.”

O encontro sempre adiado:
“... o meu querido dentista, que esteve em lua de mel. Eu financiei a lua de mel. Já lhe disse que ele me disse, na primavera, que teria que chumbar todos os dentes ou tirá-los todos? Decidi que preferia chumbá-los, porque já me habituei a ter dentes. Mas o preço é astronómico. Por isso a Isabel tem de ascender ao trono sem mim. Durante os próximos anos só os meus dentes é que vão ver coroas.”

As encomendas com desabafos:
“Têm Journey to America, de De Tocqueville? Emprestei o meu livro a alguém que nunca mo devolveu. Porque é que as pessoas que nunca sonhariam em roubar nada pensam que é perfeitamente correto roubar livros?”

E eu:
Ao ler estas cartas, ao ler esta história sobre uma amizade, percebo e concluo mais uma vez o quão fácil é fazer amigos através dos livros, que os livros são excelentes tijolos.
Para a história ser perfeita, teria a sua graça que tivesse sido um livreiro a enfiar-me o livro nas mãos, mas esta história não é perfeita, foi apenas uma pessoa que me parece ter tudo para ser meu amigo.



Da Editora:





2 comentários:

  1. Adorei ver o filme baseado neste livro. Aprende-se muito sobre livros e sobre o mundo. Vou querer ler o livro!
    Não sabia que estava traduzido em português. Obrigado pela divulgação.

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  2. E eu não sabia que existia o filme. Bom saber.

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