quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Livro do mês: "Nunca Me Deixes" e a constante erosão da esperança



"Chamo-me Kathy H. Tenho 31 anos e trabalho há mais de onze como ajudante. Parece muito tempo, bem sei, mas a verdade é que me pediram que continuasse por mais oito meses, até ao final deste ano. Completarei assim doze anos de trabalho. O facto de ser ajudante há tanto tempo não significa necessariamente que me considerem uma profissional excelente. Sei de alguns ajudantes muito competentes que foram convidados a parar ao fim de apenas dois ou três anos. E conheço pelo menos uma ajudante que, apesar de ser uma inútil, trabalhou quase catorze anos. Não pretendo gabar-me de nada. Mas sei que a qualidade do meu trabalho tem agradado aos outros e, em grande medida, a mim própria. Os dadores a meu cargo sempre se saíram melhor do que o esperado, com períodos de recuperação surpreendentemente curtos."

Assim começa "Nunca Me Deixes", o romance de realidade alternativa do japonês Kazuo Ishiguro, que escolhi para leitura conjunta do mês de Setembro. Um primeiro parágrafo que custa a mastigar, não custa? Parece uma côdea de pão seco - mas há qualquer coisa naquele grão que nos impele a continuar. Não sabemos o que aí vem - mas precisamos de saber. 

O tom meio seco da narradora e protagonista, Kathy, começa por causar desagrado. Melhor dizendo, um incómodo. Uma sensação vagamente desconfortável algures no peito. Ao mesmo tempo, serenamente, atrai e, mais adiante, aniquila - fascinante e perturbador.

A seu tempo saberemos que tipo de ajudante é Kathy. A seu tempo saberemos quem são os dadores a que se refere. Até lá, fazemos um percurso por três épocas, percorrendo linha a linha a teia delicada e sinuosa que Ishiguro vai tecendo ante nós neste romance publicado em 2005. Até lá - e não foi por acaso que "Never Let Me Go" [no título original] esteve nomeado para o galardão Book Man Prize, que Ishiguro já tinha arrecadado anos antes com "Despojos do Dia" - vogamos entre recordações de infância, sentimentos vários, impulsos artísticos, traumas, segredos. A vida, em suma. Ou como alguém definiu, assistimos à constante erosão da esperança.

Claro que posso oferecer-vos o resumo 'pop-pastilha' deste livro: três amigos de infância protagonizam um triângulo amoroso. Ponto final. Este 'bacalhau' basta para quem lê como se estivesse a tentar bater um qualquer recorde do Guiness, como agora parece ser moda. Lê-se por aí como quem está numa fábrica a aviar molas para colchões. Mas este é um livro para saborear. E que nos deixará tudo menos indiferentes. 

O crítico M. John Harrison escreveu no "The Guardian": "Nunca Me Deixes dá-nos vontade de ter sexo, tomar drogas, correr uma maratona, dançar - qualquer coisa que nos convença de que estamos vivos, mais vivos, mais determinados, mais conscientes, mais perigosos do que qualquer dos seus protagonistas. (...) Este livro é sobre a razão pela qual não explodimos, pela qual não acordamos um dia e desatamos a descer a rua, chorando e soluçando, pontapeando tudo no nosso caminho, apenas pela crua e enfurecedora lucidez de que as nossas vidas nunca foram o que poderiam ter sido".

Se isto não vos faz correr para o volume alaranjado e começar a devorá-lo, não podem dar-se ao luxo de se considerarem verdadeiros leitores.

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