Talvez isto não fique claro ainda por muito tempo, mas o exame
consciencioso dos factos que levaram aos acontecimentos principais deste relato
mostra que sua primeira cena se desenrolou em data já um pouco distante, sem
que ninguém então pudesse saber o que pressagiava. Deu-se num dia morno e
paralisado, em que até mesmo as copas das árvores amanheceram petrificadas, um
dia de soalheira. A soalheira se declara depois de uma conjugação de eventos
naturais, que somente a sabedoria de uns poucos antigos conhece em sua
inteireza. De repente, em meio a uma conversa sobre nenhum assunto, um deles
aperta os olhos como num esforço para divisar algo longínquo, esfrega a pele
dos braços e da cara, cheira o vento e comenta que, pela lua, pelo ar, pela
maré, pela textura de pele e por outros múltiplos sinais, amanhã haverá
soalheira. E de facto amanhã o dia nasce revestido de uma fulgência metálica
meio baça que converte em azougue estagnado o mar da contracosta da ilha e
embuça numa neblina translúcida os socalcos das terras fronteiras. Logo cedo, o
sol se alastra no espelho das águas, trazendo um revérbero desnatural aos
rostos e fazendo com que os saveiros navegando morosamente ao largo se ocultem
de tempos em tempos, por trás dos lampejos dos sulcos niquelados que abrem no
mar. Em terra também tudo é lento, e chega a parecer milagroso quatro
andorinhas conseguirem fender velozmente o mormaço vítreo que abafa o mundo,
para se evaporarem na névoa, harmonizadas como uma esquadrilha.
* João Ubaldo
Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, Baía, em 1941,
* Estreou-se
no romance com Setembro não Tem Sentido
(1968)
* Em 2008
ganhou o Prémio Camões.
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