quarta-feira, 5 de setembro de 2012

1º Parágrafo: O Sorriso do Lagarto


Talvez isto não fique claro ainda por muito tempo, mas o exame consciencioso dos factos que levaram aos acontecimentos principais deste relato mostra que sua primeira cena se desenrolou em data já um pouco distante, sem que ninguém então pudesse saber o que pressagiava. Deu-se num dia morno e paralisado, em que até mesmo as copas das árvores amanheceram petrificadas, um dia de soalheira. A soalheira se declara depois de uma conjugação de eventos naturais, que somente a sabedoria de uns poucos antigos conhece em sua inteireza. De repente, em meio a uma conversa sobre nenhum assunto, um deles aperta os olhos como num esforço para divisar algo longínquo, esfrega a pele dos braços e da cara, cheira o vento e comenta que, pela lua, pelo ar, pela maré, pela textura de pele e por outros múltiplos sinais, amanhã haverá soalheira. E de facto amanhã o dia nasce revestido de uma fulgência metálica meio baça que converte em azougue estagnado o mar da contracosta da ilha e embuça numa neblina translúcida os socalcos das terras fronteiras. Logo cedo, o sol se alastra no espelho das águas, trazendo um revérbero desnatural aos rostos e fazendo com que os saveiros navegando morosamente ao largo se ocultem de tempos em tempos, por trás dos lampejos dos sulcos niquelados que abrem no mar. Em terra também tudo é lento, e chega a parecer milagroso quatro andorinhas conseguirem fender velozmente o mormaço vítreo que abafa o mundo, para se evaporarem na névoa, harmonizadas como uma esquadrilha.


* João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, Baía, em 1941,
* Estreou-se no romance com Setembro não Tem Sentido (1968)
* Em 2008 ganhou o Prémio Camões.

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