terça-feira, 4 de setembro de 2012

1º Parágrafo: Cem Anos de Solidão

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e cana, construídas na margem de um rio de águas transparentes, que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome e para as mencionar era preciso apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de Março, uma família de ciganos andrajosos montava a sua tenda perto da aldeia e, num grande alvoroço de apitos e timbales, davam a conhecer as novas invenções. Primeiro levaram o íman. Um cigano corpulento, de barba ferina e mãos de pardal-dos-telhados, que se apresentou com o nome de Melquídades, fez uma truculenta demonstração daquilo que ele próprio denominava de oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedónia. Foi de casa em casa a arrastar dois lingotes metálicos, e toda a gente ficou espantada ao ver como as caldeiras, os tachos, as tenazes e os fogareiros caiam dos seus lugares, e as madeiras rangiam pelo desespero dos pregos e dos parafusos que tentavam despregar-se, e até os objectos perdidos há muito tempo apareciam por onde mais se procurara e arrastavam-se em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. “As coisas têm vida própria”, apregoava o cigano com um sotaque áspero, “é tudo uma questão de lhes acordar a alma.” José Arcadio Buendía, cuja imaginação desaforada andava sempre à frente do engenho da Natureza e ainda mais além do milagre e da magia, pensou que era possível servir-se daquele invento inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquíades, que era um homem honrado, preveniu-o: “Para isso não serve.” Mas José Arcadio Buendía não acreditava, naquela altura, na honradez dos ciganos, de modo que trocou a sua mula e algumas cabras pelos dois lingotes magnetizados. Úrsula Iguarán, sua mulher, que contava com aqueles animais para dar uma certa folga ao desmedrado património doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. “Depressa nos sobrará ouro com que empedrar a casa” replicou-lhe o marido. Durante vários meses empenhou-se em demonstrar o acerto das suas conjecturas. Explorou a região palmo a palmo, até ao fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o esconjuro de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do século XV, com todas as suas partes soldadas por uma camada de ferrugem, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcadio Buendía mais os quatro homens da sua expedição conseguiram desarticular a armadura, encontraram lá dentro um esqueleto calcificado que tinha, pendurado ao pescoço, um relicário de cobre com uma madeixa de mulher.


* Tradução de Maria Santiago
* Gabo, para os amigos, colombiano, foi Prémio Nobel em 1982
* Consta que ao ler a primeira frase da Metamorfose de Franz Kafka, "Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso", pensou "então eu posso fazer isso com as personagens? Criar situações impossíveis?".

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