Pelos olhos de Sofia, ipsis verbis
Penso em muitas coisas enquanto as outras
pessoas têm sexo com o meu corpo. Penso na matéria de história económica, penso
na opção idiota por hebraico clássico, penso no dinheiro que tenho guardado.
Não vejo o meu pai nos outros homens, não se trata disso. Só o vejo enquanto há
dor; aí sim. Quando o corpo me dói sinto a sua proximidade de forma quase
doentia.
E não tenho muitos amigos. Estes escolhi-os.
Têm as suas vantagens. O Lourenço por ser político, por entender essa dimensão
das coisas que, de certa forma, sempre me fascinaram. Jaime, será um caso de
sucesso, tenho a certeza. Fará seja o que for. Será rico. Cheira bem, veste-se
de acordo. Sei que me acha piada. Mas pouco mais. Eduardo é um pai e um filho
em simultâneo, a sua ingenuidade pode matar. Precisa de mim para manter a
realidade das coisas. E eu preciso de todos eles como muralha.
Pelos olhos de Eduardo, ipsis verbis
Era, afinal, filha de um militar, um grande
homem que fizera a guerra em países distantes e em todos os sítios para onde o
mandaram: uniforme impecável, rações limitadas, bacalhau pelo Natal, quinze
dias de licença. Uma folha de serviço de fazer inveja. Era só a vida de um
homem dedicado a obedecer.
Sempre me enervei com a vulgarização.
Comecei a beber café com quinze anos, um gesto de adulto num corpo desgraçado
de adolescente. Eu não era grande figura, já era gordo. Sempre fui. Na escola
chamavam-me rabo de abóbora.
Fumava então.
Um fumador está pronto para um desafio,
encara o corpo com arrogância e esquece o tamanho dos pulmões.
E a casa, esta casa onde os meus pais me
conceberam, onde quase cheguei a nascer. É a minha melhor historiadora. Sabe
tudo sobre mim, sobre a minha vida.
Durante semanas, apercebi-me da tensão, como
se o mundo se estivesse a esticar até ao limite, cada vez mais distante e
inexplicável; uma ruptura concreta.
Nunca quis acreditar que Sofia vivia em
desespero. Sempre existiram pormenores que escolhi ignorar. Talvez a escrita
fosse só mais um pormenor. Não sei. Para lidar com todas as vertentes da vida
de Sofia, seria preciso tempo e estômago.
Uma coisa é verdade, apesar das diferenças,
éramos uns dos outros: Jaime na arte, Lourenço na Politica, escrevendo nos
jornais e nos blogues, Sofia salvando o mundo.
Gostava dessa ideia de sermos o tudo e o
nada uns dos outros, cruzando a vida de outras pessoas, mas regressando àquela
base de afecto e confiança.
Pouco antes do acidente eu era outro homem.
A memória que – a que ainda me resta – é uma garantia disso mesmo.
As certezas de Jaime eram esmagadoras. Era
um homem que não demonstrava qualquer espécie de receio ou insegurança.
Mantinha em permanência um discurso de poder. Eu que o conhecia desde a escola
primária, sabia algumas coisas, pequenas brechas que podiam revelar o avesso do
que se via, mas escolhia o silêncio e alinhava com ele porque o amava. Era o
meu amigo mais antigo. Jaime estava, decerto, grato pela minha discrição e por
nunca falarmos de nada que fosse incriminador da sua imagem pública.
Cerro os olhos. Não o quero ver. Está tudo
perdido. Preciso de me libertar, não posso ficar preso, não posso sequer gostar
de Pedro. É preferível rejeitá-lo já. Os laços não se criam com rapidez, muito
menos num mundo assim. Ou não, talvez seja o contrário.
Lourenço era difícil. Sofia era pior. Jaime
vivia noutra dimensão. Eu, o mais equilibrado de todos. Agora só os queria de
volta. Dizer-lhes as coisas que deveria ter dito.
Sofia, nunca serás feliz. Escolheste esse
caminho. Vive a tristeza ao limite, como queiras, mas não culpes apenas o teu
pai nem qualquer outro homem.
Lourenço, a vida não vai chegar para o que
queres fazer, e vais morrer como todos nós.
A minha vida não valeria nada sem ti.
Ser-se coerente uma vida inteira, Pedro, é o
maior acto de desinteligência de todos. Desiste de querer compreender e de dar
rótulos.
E, quase no fim:
A noiva chegou de autocarro.
Inesperadamente.
Ou pensavam que
eu ia contar tudo!
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