quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Livro do Mês: Patrícia Reis em Entrevista

RSM: Como foi o processo de concepção deste livro? O tempo de escrita? A história respeitou uma esquadria pré-definida ou foi-se fazendo a si mesma?
Sou, por definição, uma coleccionadora, o que significa que não faço resumos de ideias, a dita esquadria seria, para mim, limitativa. O mais interessante é ter uma ideia e deixar levar a escrita por onde quiser. Muitas vezes estou convencida de que o caminho para um personagem é de um contorno específico e depois, no processo de escrita, percebo que não é nada disso. Como se os personagens tivessem - e têm - um destino que não controlo. O processo de escrita começa por ser, assim, mental e quando começo a escrever é quase de rajada. Como se moldasse um esqueleto. A parte pior e mais morosa vem a seguir: rever, rescrever, cortar. Corto com uma facilidade enorme e não fico apegada a nada, mesmo que sejam duzentas páginas. No caso deste livro cortei 204 sem qualquer receio. Precisava do livro no osso, como diria Cardoso Pires. A mensagem era o mais importante. É um livro sobre a importância de outros, da memória, dos amigos e dos livros como arma de salvação. O mais curioso é perceber que cada leitor se apropria dos livros e, em consequência, quando entrego um original deixa de ser meu.



RSM: Chamam-lhe “uma peregrinação futurista” parece-te uma definição que lhe assenta bem?
Mais uma vez, nas definições e formas de entender o texto e sub texto cada leitor é soberano. Gosto da ideia de peregrinação por estar aliada a um conceito de esperança e, apesar da moldura da narrativa ser um desastre por definir, nunca se perde a vontade de sobreviver. Nesse aspecto também somos animais. O futuro no livro é uma metáfora, em especial se considerarmos o que aconteceu no Japão e o facto de termos uma central nuclear a 150 km da nossa fronteira. Precisava de um espaço no tempo, não longe do que vivemos, para ter um acidente que nos levasse ao básico em vez desta vertigem tenebrosa da tecnologia que nos afasta, que faz de nós menos humanos em alguns aspectos e mais introvertidos em outros. Não sou uma info excluída e tão pouco uma fundamentalista, no entanto é fácil de perceber que a possibilidade de conversar olhos nos olhos, medindo o tom, sendo franco nas palavras, não é uma prática dos dias de hoje. O sucesso das redes sociais e dos SMS está também aí, sendo ferramentas úteis, sem dúvida, mas que dizem muito sobre a forma disfarçada como convivemos.

RSM: “Será sempre pior que Guernica, pior que o nazismo, que os genocídios africanos, que todos os 11 de Setembro, que a Guiné e o Darfur juntos, pior que todas as ditaduras derrubadas ou por derrubar. Prepara-te filha, ainda será no teu tempo de vida.” In Por Este Mundo Acima
Como podemos preparar-nos para um livro assim?
De preferência sem preconceitos. Esta citação dá-nos o lado trágico que faz, como dito, moldura à narrativa, mas não é um livro sobre uma catástrofe tão somente. É, como é tudo o que escrevi até hoje, mais um livro sobre pessoas. As pessoas são um material incrível em todos os aspectos e são plurais, desmultiplicam-se em camadas de coerência e incoerência, de medo e coragem.

RSM: Qual a tua personagem preferida? Porquê?
O Eduardo, personagem principal, é o fio condutor de tudo. Gosto dele e sonhei muitas vezes como conversaria sobre este ou outro assunto. A minha preferida talvez seja a Sofia, amiga de Eduardo, que ele recorda, pela sua fragilidade e segredos.

RSM: Depois do último ponto final, o trabalho de revisão é-te penoso e moroso, ou, pelo contrário é-te fácil, agradável e uma convivência necessária?
É-me penoso depois de estar na editora, as provas, a revisão. Enquanto está comigo tudo faz parte do processo de escrita, até ler alto por saber que todos os livros têm um som próprio. A convivência com as personagens é longa, podem ser quatro anos e, por isso, passam a fazer parte de mim. Quando entrego à editora preciso, confesso, de uma certa distância. Quando o livro sai, muitas vezes, um ano depois, há muita coisa de que já não me lembro. Estou num outro processo e o espaço mental foi ocupado por novas peças que ando a coleccionar.

RSM: “Pedro, Pedrinho és uma pedra boa de carregar.” In Por Este Mundo Acima
Quais são as tuas pedras boas de carregar?
Boas? A minha família. São pedras que podem, porventura, ser pesadas numa fase ou outra, mas são sólidas no exercício do amor e, consequentemente, têm um peso relativo. Sem eles, os homens da minha vida, não sei se teria força para escrever e publicar. Escrever é algo que está em mim. Publicar significa um número de coisas que me são, à partida, desagradáveis, como a exposição ou até mesmo a incompreensão. Um dia, há uns anos, escrevi um conto que foi publicado numa antologia. Era sobre Deus e uma potencial sala de informática através da qual organizava a vida das pessoas. Um crítico resumiu o meu trabalho assim: e PR escreve sobre Deus que, como se sabe, nunca dá resultado. Mais tarde, fui informada de que o mesmo crítico é do Opus Dei, tudo bem. Eu também sou crente e não faria uma crítica tão básica.

RSM: Por este mundo acima, foi editado em 2011, um ano após a edição, que balanço fazes deste trabalho?
Eu sou de letras, não sei balançar e já tenho a cabeça numa outra história. Posso dizer que este livro foi, provavelmente, o que teve maior impacto e será publicado este ano no Brasil, através da Leya Brasil.

RSM: Sei que consideras que há livros capazes de mudar a vida de quem lê? Este livro mudou a tua vida?
Todos os livros que escrevo me mudam, tal como os que leio e me tocam. Um livro é uma interrogação e, se conseguires, chegar à resposta, há algo que se aprende e fica connosco, além de ser sempre uma forma de evolução no processo de escrita de cada um.

RSM: Pergunta para queijo: Quais os livros que mudaram a tua vida?
A fera na selva de Henry James, Alexis ou o tratado do vão combate (aliás o meu blog chama-se http://vaocombate.blogs.sapo.pt/ por isso), Nossa senhora de mim de Maria Teresa Horta, Vale da Paixão de Lídia Jorge, uma série considerável de livros de Agustina Bessa-Luís... E depois? Há Kundera, Roth, Tolstoi, Yourcenar, Duras, Camus, Orsenna, Tabucchi... É impossível preencher o queijo!

RSM: És paralelamente editora da revista Egoísta. Como é essa aventura?
É um desafio com mais de uma década, fazer uma revista temática para curtas ficções e novos artistas não é fácil, mas sempre um desafio. É preciso sublinhar que a Egoísta é um veículo de comunicação do Grupo Estoril-Sol, uma empresa cujas iniciativas ao nível cultural são dignas de nota. É importante ainda dizer que a revista se faz no atelier 004, www.004.pt, e temos uma equipa de luxo. Os prémios que ganhámos, dentro e fora de portas, são um alento e, ao mesmo tempo, aconteceram coisas que nunca foram previstas como o facto de a Egoísta ser seleccionada para estar no Louvre, há quatro anos, como exemplo de qualidade editorial e design.



RSM: “Sobreviver ocupa demasiado tempo.” In Por Este Mundo Acima
Consideras-te uma sobrevivente?
Sem dúvida. Sou uma sobrevivente de muitas coisas, como todos, ciente de que tenho a sorte ou o privilégio de me resolver através da escrita.

Obrigada.

3 comentários:

  1. Bem, Raquel, se ontem já me deixaste curiosa, depois desta entrevista ainda muito mais!!!
    E parabéns à entrevistadora...! Que ricas perguntas!

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  2. Entrevista fantástica e motivadora para se conhecer a entrevistada. Parabéns.

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  3. É verdade, as perguntas foram boas e originais, na generalidade. O livro, já li e recomendo. Não se pode ficar indiferente e pode até, mudar um pouco - senão a vida de alguém - pelo menos o pensamento e o olhar sobre o nosso mundo. A P.R., além de saber escrever muito bem, tem coisas a dizer. Coisas que valem a pena.

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