quarta-feira, 1 de agosto de 2012

In memoriam: Gore Vidal - "Love is not my bag"


Morreu. Acontece-nos a todos. Aconteceu ontem a Gore Vidal, autor norte-americano altamente polémico, vaidoso, incisivo, delicioso, 86 anos. Um homem sem paciência para idiotas e que garantia estar longe de ser um romântico ou sequer sentimental. “Love is not my bag” terá dito. Algo como “o amor não é a minha praia”, se quiserem. Italo Calvino, algures, cita Vidal de memória: “Sou exactamente o que está à vista. Não há nenhuma pessoa calorosa e amável dentro de mim. Sob o meu frio exterior, assim que conseguem quebrar o gelo, só encontram água fria”. 

E, no entanto, cá para mim, foi um romântico dos antigos. Em plena adolescência, no colégio de St. Albans, vive a sua primeira grande paixão, um rapazinho chamado Jimmie Trimble que viria a morrer pouco tempo depois, em Iwo Jima, durante a Segunda Guerra Mundial, selando assim o seu coração. 


A Jimmie dedicou o livro “A Cidade e o Pilar”, escrito entre 1947 e 49, quando viveu na cidade guatemalteca de Antigua. A história de um jovem atlético que, aos poucos, vai descobrindo a sua homossexualidade. Lido hoje, é algo quase discreto. Mas à época protagonizou uma escandaleira que lhe complicou muito a vida e que, embora o seu lado de durão sem papas na língua não gostasse de admitir, o terá tornado no homem despudorado e desprendido que se gabaria mais tarde de, com apenas 25 anos, já ter tido relações sexuais com mais de mil homens e mulheres. 

Ainda assim, lá está a minha teoria, Gore Vidal era homem de um só homem. Durante os últimos 53 anos de vida teve como companheiro Howard Austen, de quem só se separaria quando este morreu em 2003. O segredo de tão longa relação? Segundo o “New York Times” de hoje mesmo, Vidal costumava garantir que estava no facto de nunca terem dormido juntos. 


Em Setembro de 1969, em artigo na revista “Esquire”, Vidal escreveu isto – "Para começar, todos somos bissexuais. Trata-se de um facto da nossa natureza. E todos somos sensíveis a estímulos sexuais do nosso próprio sexo bem como do sexo oposto. Certas sociedades, em certas ocasiões, sobretudo pelo interesse em manter o abastecimento de bebés, têm desencorajado a homossexualidade. Outras sociedades, especialmente as militaristas, têm-na exaltado. Mas, independentemente de tabus tribais, a homossexualidade é uma constante da condição humana e não é doença, nem pecado, nem crime...  Apesar dos melhores esforços das nossas tribos de puritanos para que o seja. A homossexualidade é tão natural como a heterossexualidade. Reparem que eu utilizo 'natural' e não 'normal'”.


De tudo isto e de tanto mais, Gore Vidal fala em “Palimpsesto”, o livro de memórias primeiro publicado em 1995 – e de que, in memoriam, aqui vos deixamos o início, numa tradução para português gentilmente cedida pela Maria João Afonso, e decerto a editar em breve pela Casa das Letras. 

“PALIMPSESTO

Uma teia de mentiras? Poderá existir título mais convincentemente adequado para umas memórias? Em especial se quem recorda o seu passado se refere não tão tanto às suas próprias mentiras como às de terceiros e, se me é permitida a imodéstia da vanglória, eu andei mano a mano com alguns dos maiores mentirosos do nosso tempo. Mas também fui romancista numa época em que a linha entre a ficção e os factos se diluiu bastante quando, com o maior sangue frio, o «romancista» se sentiu livre para inventar coisas para as pessoas reais fazerem na página. Estive ainda envolvido na política, no teatro e no cinema, três mundos em que nunca ninguém está sob juramento – até ser acusado, claro – caso em que aquele que sofre a queda acaba por criar a teia de mentiras final, com frequência mais do que uma vez, como aconteceu com o incomparável R. M. Nixon.

Escrevo isto em 26 de Agosto de 1994 – de mau humor, evitando uma tentadora mentira de conveniência; uma vez que por regra gosto de manter o presente no presente, quis sublinhar que hoje, depois do Verão mais quente de sempre no sul da Itália, a vaga de calor cedeu. Mas não foi hoje, foi ontem que o tempo mudou. Da nossa casa aqui em Ravello, num penhasco por cima do Golfo de Salerno, assistimos a uma trovoada a oeste e outra a leste e levantou-se um vento súbito que encheu a casa de folhas secas.
Pela primeira vez em dois meses, sinto-me fresco e capaz de encarar o que escrevi ao longo dos últimos dois anos: uma descrição dos primeiros trinta e cinco anos da minha vida vista vinte e nove anos mais tarde. Acabei de reparar que nesta teia – não, não! neste registo de eternas verdades e veracidades, como o definiu famosa e tão tipicamente William Faulkner – no Verão passado, o calor começou no dia 21 de Agosto, cinco dia mais cedo do que este ano.
” 

Gore Vidal (1925–2012)

2 comentários:

  1. Quem me dera ter a oportunidade de traduzir mais livros dele: tem uma escrita elegante, se bem que complicada, e o que conta é sempre um fascínio...

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  2. Decerto surgirá a oportunidade, mais agora com a sua morte. É sempre assim.
    Mas, para já, e mais uma vez, muito obrigada Maria João por nos teres dado o privilégio de publicar em primeira mão os primeiros parágrafos da primeira tradução para português do livro de memórias de Gore Vidal. :-)*

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