domingo, 12 de agosto de 2012

(ao domingo) Letras Focadas

(ao domingo) Letras Focadas

“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas”

Esta noite, escrita de Emilio Miranda. Num texto poético, uma breve autobiografia.
Leiam...vale a pena. Ilustrado por olhares meus.

Como sussurros de embondeiros
[Aos meus Pais e Irmãos]


I

A maior parte das coisas passa por nós como uma brisa, às vezes acaricia-nos o rosto e os cabelos, mas logo se perde num destino ignorado. No entanto, nada do que nos toca, desaparece sem deixar algo. Muitas vezes, só muito mais tarde nos damos conta da importância do que ficou: ou, melhor, do que passou por nós.
Somos o resultado de muitas brisas.

II

Quando me questiono acerca das inúmeras brisas que me marcaram, não posso, não consigo esquecer, aquela que me fez despertar para a vida.
Tinha um cheiro intenso a maresia, o travo salgado que reconheci, como se tivesse sido, numa outra existência, uma qualquer criatura marinha.


III

Este pensamento só o esbocei anos mais tarde, quando já era suficientemente racional para perceber que enquanto vivemos estamos permanentemente a confrontar-nos com memórias, reminiscências de que somos reféns, mas também resultado, obra de uma qualquer divindade opípara.

IV

As minhas lembranças estão repletas de aromas olfativos, mas também de aromas visuais.
Há sobretudo muita luz.
Serão as memórias história? Far-se-á a história de memórias? E de cheiros?

V

De tílias, de laranjeiras, de brisas salgadas de mar. De terra molhada, de cacimbo, de mangais ao sol, de crepúsculos e de alvoradas.
Parecem plantar-se dentro de mim, com a intensidade de sementes profundamente cravadas na memória.

VI

A Maianga é o primeiro local de que me recordo e está associado a esse inefável odor de caranguejos a cozer, numa de tarde de sábado. Como sei que era sábado, é uma incógnita, pois não passava ainda de uma criança a despertar para a consciência de mim mesmo.
Devia ter uns quatro anos, porque há ainda outras lembranças associadas à Maianga, antes de termos mudado para o Cazenga, onde o cheiro dos cadernos novos, da borracha e dos lápis de cor, com que entrei para o colégio, mal fiz os cinco anos, marcou o início desses dias.
A pasta nova foi um dos meus primeiros objetos de vaidade pessoal, mas também aquele que me confrontou, pela primeira vez, com a consciência dos marcos decisivos, que haveria de me revisitar ao longo da vida…


VII

Do colégio recordo sobretudo as cores dos primeiros desenhos: cores quentes e intensas com que imaginava o mundo tal como o via.
Uma casa, paredes retilíneas, janelas perfeitamente enquadradas, o telhado vermelho e o azul do céu. Tons de laranja, verdes macios, um paraíso de cor.
Chuvas tropicais, embondeiros com as raízes imersas em lagoas…

VIII

De-tempos-a-tempos, os «barriga de jinguba» largavam paraquedistas sobre os musseques, e pequenas avionetas faziam chover nuvens de folhetos que perseguíamos em alegre correria, ou fumigavam as águas paradas com inseticida, cujo cheiro se demorava, até ser levado por uma brisa. 

IX

Entre as lembranças mais marcantes está aquela em que regressávamos da foz do Cuanza depois de um dia de passeio.
Mortos e destroços espalhados pelo asfalto e o fantasma de um homem que chorava, alheio à ferida hedionda que lhe rasgava a boca…

X

A consciência da morte é porventura a mais forte e a que durante mais tempo perdura, sobretudo quando vem acompanhada do cheiro doce das rosas, dos cravos e das buganvílias.
Como quando a pequena Eugénia morreu.
De que valem as lágrimas quando expira alguém, ainda mais quando não se trata de uma criança normal, capaz de correr, saltar e alimentar-se pela própria mão?

XI

A noção concreta e física de que tudo pode mudar num ápice atingiu-me pela primeira vez na manhã em que entrei na padaria do bairro e escutei os relatos dos massacres nas distantes fazendas coloniais; lugares de que não suspeitava sequer a existência. Homens, mulheres e crianças tinham sido barbaramente massacrados a golpes de catana…
Abriu-se em mim uma sombria e escura porta, por onde a minha imaginação entrou vadia. Percebi então a brutalidade da vida e tive a sensação de que toda a ordem pode simplesmente ruir, numa súbita e inexplicável tempestade.
Desde essa manhã, a guerra entrou nas nossas vidas.


XII

Um dia, ao final da tarde, o pai estava na rua, talvez a fumar, quando o carro passou e metralhou a casa. Não fosse ter entrado, segundos antes, e teria sido atingido pelos tiros. A partir daí o sossego terminou. Os tiros repetiram-se e entre noites em casa dos tios e no hospital universitário (onde o pai e a mãe trabalhavam), e alguns sustos, acabamos por fugir do Cazenga e fomos viver para a António Barroso, onde ficamos até ao embarque para a metrópole.

XIII

Era inverno, quando chegamos, e através das janelas do comboio a terra era branca… e o cheiro do ar, de tão frio, mordia as narinas…
Em contrapartida, no Cazenga, ao meio-dia o chão queimava a planta dos pés e íamos calçar-nos para podermos continuar a brincar…
Andar descalços era sermos livres…


XIV

Tão livres que não havia dia em que o pai não tivesse que ir chamar-nos para o almoço…
[Não é possível ensinar o tempo, a quem não se rege por ele…]
No Cazenga, a terra era macia e até o frio do cacimbo estava longe do gelo dos invernos em Lordelo…
Chuva, frio e nevoeiro, e o cheiro acre a fumo…

XV

No verão calcorreávamos matas e ribeiras, à cata de ninhos ou banhando-nos em levadas, tanques de rega e lagoas… tão diferente dos banhos tomados na água barrenta das grandes chuvadas do Cazenga, onde éramos como girinos, chafurdando em água lodosa…
Apesar de a água correr em torneiras e haver uma banheira onde todos os dias tomávamos banho.

XVI

Em Lordelo havia apenas uma torneira na fonte onde íamos buscar a água a cântaros, e nenhuma banheira em casa… Por isso, os banhos eram escassos, sobretudo nos longos meses de inverno, sempre tomados à pressa na grande bacia de plástico, a tiritar…

XVII

Mas o frio e o nevoeiro conferiam um ar de mistério a tudo quando se avistava nos montes e terrenos que envolviam o quinteiro da casa.
Antiga, feita de pedra e estuque, com as vigas e as telhas à mostra… varandas abertas à chuva, ao vento e ao frio… mas também ao sol, nas longas tardes de verão.

XVIII

As memórias são uma espécie de lamparina que espreita por entre a bruma, nas longas noites de inverno da aldeia.
A casa ficava ao cimo da rua, um pouco antes da igreja e à direita. Ao lado, e descendo junto ao muro do quinteiro, a lembrar a muralha de um castelo, escorria o quelho que levava ao souto e à escola, de onde se avistava outra muralha, a do cemitério, que parecia mais uma fortaleza rompendo as neblinas que subiam da terra fria, para se unirem às que desciam do álgido céu cinzento.
Tudo era tão antigo que ou era de romanos ou de mouros: as minas, as pontes, os carreiros escusos, os olivais contorcidos nas encostas dos montes…

XIX

Havia cheiros novos, como o do azeite ou o do mosto, mas o que se entranhava na roupa era o oleoso e denso, do fumo… Encolhidos defronte da lareira, não havia como escapar a este persistente odor, que devia ser o que tinham os índios quando se sentavam à volta das fogueiras nos filmes de cobóis.

XX

Tantas coisas diferentes!
O capim passou a ser erva, os baixos lojas, e o alimento das vacas penso. As tabernas casas de pasto. Os campos lameiros. O chão de soalho, em vez de mosaico fresco, onde sabia tão bem deitarmo-nos nas tardes quentes de Luanda…
A mãe saía e destinava-nos as tarefas do dia. Limpar o chão era a que mais gostava de fazer. O pano deslizava no mosaico cinzento dos quartos, da sala, do corredor e da cozinha, e a casa ficava a cheirar a fresco, apesar do calor que incendiava o dia lá fora.

XXI

No quintal da casa do Cazenga o pai semeava batatas, ervilhas e tomates, nos tempos livres. Feijões, pés de gindungo e favas. E tudo nascia como por magia… Se bem que nunca me tivesse questionado acerca disso, senão quando vi o tempo que tudo demorava a crescer na metrópole. Tanta fome tinha a terra para dar tão pouco e apenas uma vez por ano! Batatas semeadas inteiras, enquanto no Cazenga bastava lançar fora as cascas das aparas.

XXII

Descolonização! Que conceito extraordinário, o que divide, fracciona, abre fendas…


XXIII

Quando chegamos apenas os nossos familiares mais próximos nos olhavam como se olha para alguém de quem se gosta, sem recear que viéssemos tirar-lhes o pouco que tinham, sem invejas nem recriminações. E aqueles que tanto defendiam a libertação dos povos das colónias e a igualdade entre os homens, independentemente da cor da pele, olhavam para nós como estranhos, como alguém que não se deseja… Durante os primeiros anos encaram-nos como uma espécie diferente de gente a quem chamavam exploradores, retornados e outras coisas mais que apenas o tempo fez esquecer. Talvez seja normal que a chegada de estranhos, nas circunstâncias em que se deu a nossa, fosse encarada como uma invasão, uma ameaça.
Mas o que parecia que nem éramos gente do mesmo povo, que não pertencíamos à grande nação imperial que começava a esboroar-se.

XXIV

Os muros do quinteiro eram ameias para assaltos e lutas de espada, palco onde os filmes da televisão se transformavam em brincadeiras arrojadas. A Flecha Negra começou a dar aos sábados e os arcos e as flechas vieram para ficar.
A metrópole era um reino maravilhoso. E sendo de facto maravilhoso, não deixava de ser povoado por coisas e histórias estranhas, como as de bruxas, de almas penadas e de maus-olhados. De tal modo eram assustadoras que o cemitério parecia vigiar-nos os passos, noite alta, quando regressávamos a casa, da venda do povo e do café, depois de a televisão fechar.

XXV

Um casal sonha e faz milhares de quilómetros para concretizar esse sonho, e 27 anos depois regressa com as mãos vazias. Mas os filhos também podem ser o melhor dos sonhos… e o pai e a mãe trouxeram quatro.
As brisas ainda sopram e soprarão enquanto a vida ditar a sua lei, como sussurros de embondeiros a lembrarem-nos que pudemos já não estar onde nascemos, mas seremos sempre desse lugar, mais do que de qualquer outro.



FIM
Texto de Emílio Miranda
Fotos de Elsa Martins Esteves

1 comentário:

  1. Eu também tenho o olfato como o mais aguçado dos sentidos, desde muito pequena, e guardo todos os cheiros na memória com mais nitidez do que o normal seria...
    Abraço,
    Sônia

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