quarta-feira, 22 de agosto de 2012

1º Parágrafo: As Naus


Passara por Lixboa há dezoito ou vinte anos a caminho de Angola e o que recordava melhor eram as discussões dos pais na pensão do Conde Redondo onde ficaram entre tinir de baldes e resmungos exasperados de mulher. Lembrava-se da casa de banho colectiva, com um lavatório de torneiras barrocas imitando peixes que vomitavam soluços de água parda pelas goelas abertas e da altura em que topou com um senhor de idade, a sorrir na retrete de calças pelos joelhos. À Noite, se abria a janela, via os restaurantes chineses iluminados, os glaciares sonâmbulos dos estabelecimentos de electrodomésticos na penumbra, e cabeleiras loiras no lancil dos passeios. De forma que urinava nos lençóis por medo de encontrar o cavalheiro do sorriso atrás dos peixes oxidados que rebocavam notários corredor adiante baloiçando a chave do quarto no mindinho. E acabava por adormecer a sonhar com as ruas intermináveis de Coruche, os limoeiros gémeos do quintal do prior e o avô cego, de olhos lisos de estátua, sentado num banquito à porta da taberna, ao mesmo tempo que uma manada de ambulâncias assobiava Gomes Freire fora na direcção do Hospital de São José.


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