segunda-feira, 11 de junho de 2012

SimetriaS


Um dia destes, desço as escadas, atravesso a rua, como sempre, fora da passadeira.
A única passadeira da rua fica no fundo da rua.
Eu nunca fui ao fundo da rua.
Eu nunca atravesso na passadeira.
Um dia destes, atravesso a rua e toco na campainha do sexto andar do 226, que fica exactamente em frente do 233, onde eu moro.
Onde eu moro desde o Outono do quarto ano que passou, e pergunto-lhe, simplesmente, se posso subir e ficar para jantar.
Não sei como se chama, até agora não precisei de lhe dar um nome, como ao meu gato: ícaro.
Sei que chega todos os dias a casa depois das sete.
Eu chego depois das seis, pelo que, todos os dias, o espero pelo menos uma hora.
Uma hora vezes mil quatrocentos e oitenta e oito dias, dá mil quatrocentas e quarenta e oito horas, como os dias são feitos de vinte e quatro horas, temos sessenta vírgula três, três, três, três, três, três… dias.
Todos os dias entra em casa e, depois de pendurar a gabardina, cuja cor a confunde com a parede, depois de passar pelo quarto para tirar a gravata, eu não o vejo tirar a gravata, mas sai do quarto sem a gravata, a desabotoar o botão do colarinho da camisa, depois de passar pela casa-de-banho para lavar as mãos, a cara, também não o consigo ver na casa-de-banho, imagino-o apenas, imagino-o de cara ainda molhada em frente ao espelho, imagino-o a afundar a cara na toalha de turco à procura de conforto, quase de afecto, depois de passar pelo frigorífico, não o consigo ver na cozinha, mas aparece de cerveja na mão, depois de fazer tudo isto, todos os dias, senta-se no sofá em frente à televisão.
Quase nunca liga a televisão, porque não o vejo pegar no comando e porque, nos dias de Outono e Inverno, consigo perceber que não sai qualquer tipo de luz da caixa, nem sombras nascem na parede.
As nossas salas são basicamente simétricas, as nossas casas praticamente idênticas, as nossas vidas provavelmente análogas.
As salas, três portas de correr envidraçadas, que dão para duas varandas que não existem, porque não têm mais de um palmo de existência para lá do chão da sala.
No meio das salas, de costas para as varandas que não existem, dois móveis, pequenos, quadrados, suficientes como Atlas, para suportar as televisões.
Os dois temos televisão na sala.
É suposto ter televisão na sala.
A minha televisão não tem nada em cima, a dele também não, isto não é relevante, mas agrada-me. Talvez seja relevante.
Depois da televisão temos os sofás, os dois sofás de três lugares.
Os dois gostamos de ver televisão deitados.
Quase não vemos televisão.
As luzes dos respectivos tectos apagadas, as duas salas iluminadas apenas pelos candeeiros da rua e, quase sempre, sombra nenhuma, movimento nenhum, penumbra apenas.
No horário de Inverno os candeeiros acendem às oito, no horário de Verão, às nove, e é preciso estar atento ao relógio para perceber isto, porque a luz no início é tão fraca e ténue que imperceptível.
Parece-me que muitas vezes adormecemos juntos, eu, deitada do lado esquerdo, com almofada, ele, sem almofada, deitado do lado direito.
Parece-me ou gosto de pensar que é assim que acontece.
O meu sofá é verde azeitona, o dele castanho chocolate.
E nas costas dos sofás, encostadas à parede, temos uma estante, a minha em branco lacado, a dele em pinho encerado.
Estantes que cobrem quase toda a parede, onde ele tem revistas, livros de BD, uma enciclopédia, três dicionários de Português, um de Espanhol, um de Francês, um de Húngaro.
Pergunto-me porque será que tem um dicionário de Húngaro-Português.
Uma caixa de trivial pursuit, acho que um jogo inventado por canadianos, um electrodoméstico de plástico negro que serve para ouvir música e alguns discos, onde predominam as vozes de Sinatra e Bono Vox.
A minha estante está povoada por romances sul-americanos, italianos e russos, livros de viagens, livros de poesia portuguesa e caixas e caixinhas de papel, madeira ou porcelana, e fotografias de quando eu era menina.
Pergunto-me o que sou agora.
Na minha fotografia preferida estou com um vestido branco, com um enorme laço a apertar-me a cintura, um chapéu vermelho e um balão na mão, também vermelho, estou no jardim zoológico, em frente a um camelo.
A verdade é que se trata de um dromedário, mas ninguém chama dromedários aos dromedários.
E, sempre que os meus olhos param naquela foto, eu no deserto do Saara, no quinquagésimo dia de viagem, uma viagem interminável, o vestido não branco, amarelo, quase castanho, da cor de um deserto, o meu deserto, o mesmo chapéu vermelho que já só me protege o cocuruto, e um balão vermelho, meio vazio e que a gravidade impede de levitar.
Suspeito que é por isto que, por mais que limpe, na sala sempre uma película de pó, um pó estranho, fino e amarelo.
 
Raquel Serejo Martins



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