segunda-feira, 4 de junho de 2012

Como foi ler «Somos o Esquecimento que Seremos»

Em primeiro lugar, gostava que ficassem com o perfume das palavras do Colombiano Héctor Abad Faciolince, com esta passagem:

«O meu pai e a minha mãe eram contraditórios nas suas crenças e nos seus comportamentos, mas complementares e de trato muito amoroso na vida diária. Havia um contraste tão nítido de atitude, de carácter e de formação entre os dois que, para a criança que eu era, essa diferença radical entre os meus modelos de vida era a adivinha mais difícil de decifrar. Ele era agnóstico e ela era quase mística; ele odiava o dinheiro e, ela, a pobreza; ele era materialista no plano ultraterreno e espiritual no terreno, enquanto ela deixava o espiritual para o além e, cá na Terra, perseguia os bens materiais. A contradição, no entanto, não parecia afastá-los, mas atraí-los um para o outro, talvez por partilharem, apesar de tudo, um mesmo núcleo de ética humana com o qual se identificavam. O meu pai consultava-a para tudo, enquanto a minha mãe, como se costuma dizer, via pelos olhos dele e nutria por ele um amor profundo, incondicional, á prova não só de contratempos, como também de qualquer desacordo radical ou de qualquer informação maligna ou perniciosa que alguma «alma caridosa» lhe desse sobre ele.»

Terminada a leitura que vos propus neste mês de Maio que passou, fica a a sensação de ter escolhido o livro perfeito para ser discutido. Tem todos os ingredientes de uma grande narrativa: personagens que viveram verdadeiramente a história, vidas entregues a causas e ideais, retrato de um país e de uma sociedade, de uma época e seus costumes. Uma viagem à Colômbia e às suas crenças. Uma excelente aventura de descoberta. De lugares, pessoas e suas vidas.

Admiro a coragem de Héctor Abad Faciolince. Escrever sobre a vida do seu próprio Pai não é um exercício fácil, dadas as circunstâncias do seu desaparecimento: foi assassinado. Mas mais nobre é o reconhecimento - já na parte final do livro - que esta seria a única forma que estava ao seu alcance de honrar este idealista, lutador, notável académico e médico. Mesmo que tenham passado alguns anos e a ferida da morte violenta nunca tenha verdadeiramente sarado...

Manuel Rivas diz que "O que vou lendo de Héctor Abad vai sendo gravado por mim como migalhas de pão muito esféricas, polidas, para quando tiver de atravessar um grande bosque na noite.». Não podia estar mais de acordo. É preciso coragem para ir ao baú das memórias e procurar as mais belas e também as mais tristes vivências no trajecto de cada um.

Somos o Esquecimento que Seremos não é só a história de vida do Dr. Héctor. É também da família do escritor, único rapaz no meio de quatro irmãs. É a história do filho e do Pai, de como este o adorava e enchia de coragem e mimos. Da deliciosa retórica que o Pai usa na educação dele e das suas irmãs, tentando sempre compreender as questões únicas e próprias das diferentes fases de crescimento: criança, adolescência, vida adulta. Numa mensagem única de amor e compreensão que, até hoje, nunca li em qualquer outro livro que se desafie a falar de um progenitor.

A honestidade com que Héctor fala de assuntos tão pessoais como a morte prematura de uma das irmãs aos quinze anos, vítima de cancro; é admirável. Mas, de igual modo, não esconde as suas origens moldadas pelo exagerado Catolicismo vivido na altura, mesmo nos colégios onde estudou; na família da Mãe, onde abundavam inúmeros Sacerdotes e pessoas ligadas à Igreja. Uma Igreja que tentava controlar as Crenças e os meios académicos que punham em causa a sua hegemonia. O mesmo se passa com as facções políticas e os boatos de se pertencer a determinada corrente (ainda hoje são responsáveis por uma perseguição sanguinária neste País). Apesar da nossa principal personagem (Dr. Héctor) não fazer parte de qualquer quadro partidário, são impressionantes as pressões e ameaças que sentiu na pele por defender as suas ideias, por escrever num jornal, por as difundir enquanto homem e académico universitário. Por essas ideias pagou com a vida. Ele e muitos outros que são retratados neste livro. E muitos anónimos cujo paradeiro nunca mais foi investigado.

É difícil enunciarmos quantos livros nos emocionam verdadeiramente. Este, desde o início, teve um significado especial para mim. Não consegui largá-lo enquanto não o devorei. Tenho a certeza que muitos se identificarão com a história. E voltaremos a ela as vezes que forem precisas...


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