quinta-feira, 24 de maio de 2012

Um certo jeito de ensaio sobre uma espécie de solidão


A propósito deste texto do Jaime Bulhosa no blogue da Livraria Pó dos Livros:

A senhora X, octogenária, vem desde há quatro anos, todas as tardes, à livraria Pó dos Livros. Entra silenciosamente e, como é costume, cumprimenta-nos com um suave: - Boa tarde. Depois, dirige-se devagarinho para as estantes junto ao café e retira como é habitual dois ou três títulos e tão silenciosamente como entra, senta-se no café, sempre no mesmo lugar, a ler. Quando chega a hora de fechar, deixa os livros em cima da mesa e retira-se com outro ameno: - Boa noite. Em quatro anos, boa tarde e boa noite, foram as únicas palavras que lhe ouvi proferir. Não foi pelo facto da senhora utilizar a livraria como biblioteca que decidi perguntar-lhe a razão porque o fazia há tanto tempo, apenas por curiosidade. Respondeu-me: - Venho para cá porque vocês me fazem companhia. Em casa estaria, mais uma vez, sozinha. Dia 10 de Novembro de 2011 Nota: Já há uns dias que tinha dado pela ausência. A partir de agora e todos os dias, no fim da tarde, no café, há uma cadeira que antes ocupada estará vazia. Tive a triste notícia de que a senhora faleceu. Vai fazer-me falta a silenciosa companhia. 

Deu-me vontade de escrever e ensaiar o que agora partilho aqui. 

A solidão tem das suas coisas, sozinhos no meio de tanta gente, abandonados em cidades afogadas de pessoas. Tanta gente sozinha no meio de tanta gente. Procuramos tantas vezes alguém para falar, muitas das vezes só para ouvir. Nos meus dias em que contacto mais directamente com os leitores também já vi pessoas destas. As que procuram numa pequena pergunta uma conversa que dure mais que os minutos da resposta imediata. Os que são fiéis visitantes, que se cumprimenta, com que se trocam umas palavras, os que voltam todos os dias e no fim dizem "até para o ano... se deus quiser". 

Eu não acredito em deus, mas acredito na solidão. A solidão demasiado ruidosa, como escreveu o Bohumil Hrabal que também já passou pelo blogue

A solidão das vozes do passado que insistem em falar dentro das nossas cabeças. O barulho lá fora, ensurdecedor de tão silencioso, compassado. O autocarro que passa de hora a hora, o sino da igreja mais próxima, um lixeiro que passa a arrastar a vassoura lentamente porque o lixo não tem pressa, porque as horas da noite são mais demoradas.

Os relógios que demoram as noites em horas longas de insónia. Mil pensamentos enquanto se olha para um tecto vazio, em branco. Mil ideias para colocar numa folha branca, vazia, e uma caneta que se recusa a escrever isso tudo.

A solidão do escritor, acompanhado pela biblioteca, pela caneta, pelas folhas. Uma chávena de chá que tenta almofadar a solidão. A recordação do cheiro da mulher que passou aqui bem agora e que largou um beijo. Ciumenta daqueles papéis em branco que a deixam também numa outra solidão.

A manhã que se levanta e o sol que insiste em não se cruzar com a lua. Sós os dois a cumprirem as suas funções. Um de cada vez. Os ruídos que se transformam e mais um dia para arrancar. Fechado nessa solidão que me põe no meio dos outros.


A verdade é que o mundo dos livros é muitas vezes feito de solidões. Estar sozinho para ler, para escrever, escrever sobre a solidão. A ficção empurra-nos para esse caminho. Procurar um eu que não está ali, construir uma história, inventar uma amante, um crime, uma morte. Criar algo.

"Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite."
Clarice Lispector

Sem entrar por um campo demasiado esotérico ou religioso, todos, todas as pessoas são limitadas pelo seu próprio corpo. Fisicamente, terminam onde acaba a sua pele e, durante toda a sua vida, carregam a si mesmas, mas não se pode carregar ou conter nenhum outro. Ontologicamente, pela sua própria natureza física, o ser humano é solitário. Entra no mundo, faz sua trajectória por ele e também o deixa completamente sozinho, termina solitário. 

E agora... agora...
Vou só ali espreitar onde ficou a minha cidade. saber o que foi feito de mim neste tempo em que me deixei adormecer da realidade. Vou só ali num instante... não porque tenha pressa. Sei que não posso mais voltar ao lugar onde estava. A cidade não voltará a ser como era antes. Nós nunca mais seremos os mesmos. As ruas vão continuar a saber dos nossos passos e as paredes das nossas vozes. Mas a cidade essa sabe que há coisas que mudam.


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