Letras Focadas
“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas”
Parte I
A viagem
São 23 horas! Lá fora reina o silêncio de uma guerra com horas marcadas.
A menina, já mulher, que docemente lhe chamam Cita, aconchega-se nos
lençóis, pensando que os homens apenas se tornaram crianças e, por breves
instantes, resolveram brincar às guerras!
Amanhã, quando acordar, tudo estará como dantes: A avó estará à sua espera
com uma taça de flocos, como só ela sabe fazer; a colega de sempre, estará
junto ao portão, de mochila às costas, seguindo juntas para o liceu; a Laica,
fiel companheira, ladrará à sua passagem dando-lhe os bons dias. Amanhã, quando
acordar, o seu mundo estará no mesmo lugar, no ponto onde tudo era perfeito!
Fecha os olhos… adormece….
-Cita… Cita… acorda filha… rápido! Chegou a hora!
A voz soa-lhe familiar, mas a mensagem é-lhe profundamente estranha e
perturbadora. O pai junto à cama, mostra-se ansioso e Cita percebe de imediato
que o sonho morrera e, que a partir daquele momento, a realidade dura de uma
guerra que não compreende definiria a sua vida e tudo seria diferente.
As regras estabelecidas há muito são cumpridas a rigor: luzes apagadas,
silêncio absoluto…! Tudo se faz mecanicamente como se o chão fosse algodão e na
escuridão brilhasse o mais esplendoroso sol.
Obedece em silêncio! Os gestos, vezes sem conta ensaiados, como se de uma
peça de teatro tratasse, têm hoje a sua grande estreia! Hoje não é ensaio,
hoje é a sério!
À meia-noite em ponto começa a viagem! E que viagem!
Pensou dentro da sua inocência que seria uma grande aventura e, no regresso,
levaria alguns serões a contar as peripécias. Seria com certeza considerada uma
heroína e esse pensamento encheu-a de vaidade!
Breve foi o seu devaneio! Olhou em redor e, na carruagem onde estava,
cheirava a tristeza, dor! Percebeu que a aventura não era de descobertas, de
mistérios, mas de perdas, de vidas interrompidas e sonhos desfeitos.
Fixou o olhar naquela senhora de meia-idade que tricotava sem cessar!
Pensou: deve estar a fazer uma camisola! E, com a velocidade com que cruzava as
agulhas e passava a linha, logo a camisola laranja e verde, andaria cobrindo o
corpo de alguém!
Estranhou o olhar parado, distante, sem luz, daquela senhora! Se não
prestar atenção, ainda fica um buraco na camisola – pensou!
O barulho de um forte apito e do movimento brusco do comboio em movimento,
trouxe-a de volta! Agora era o cheiro que a incomodava. Comida... cheiro de
comida! Achou que estava tudo louco!
Então este não é o mesmo comboio que a levava todos os anos para as férias
grandes na praia? Isto é uma simples viagem, ora essa! É preciso levar tanta
comida, tanto saco, tanto trapo?
Reparou que ao seu lado ia apenas um saco da TAP de viagem e o cão de
peluche (recebido há pouco tempo no aniversário)! Assim é que é, pensou! Para a
viagem o indispensável, nada mais!!!!
-Cita, vê se dormes! Tens uma longa viagem pela frente e não sei se no
barco vais ter condições para dormir! A mãe ao seu lado arranca-lhe a fuga da
realidade com esta frase!
Não ia para férias, não ia para a praia! Ia fugir da guerra! Dos homens que
perderam a inocência e que resgataram, como se fosse deles, a sua vida!
Hoje, pela noite dentro, ia deixando para trás a única vida que tinha
conhecido. A casa, a família, os amigos, tudo ficava para trás. Nada voltaria a
ser como dantes! E fazia-lhe muita espécie não entender isto! O porquê?
Cita sempre se tinha revelado uma criança curiosa e se a um “porquê?”, a
resposta fosse um “porque sim”, levavam no retorno com mais “mas porquê?”. Esta
curiosidade revelar-se-ia bem mais tarde, numa opção de vida!
Adormece embalada pelo movimento hipnótico do
comboio... pouca-terra... pouca-terra... pouca-terra....
II
Ao chegar ao cais vê que não está
só!
São milhares de pessoas. Precisamente 2.640 pessoas. Este número ficará
gravado na sua memória para sempre.
É este número que a acompanhará dois dias, espalhado pelo convés de um
barco gasto. Não há um espaço livre, apenas buracos onde pessoas se encaixam,
se amontoam.
Chega a hora!
A mãe, como todas as mães deste mundo, mostra-se firme, corajosa! No
entanto, no seu olhar é só dor, é só saudade!
Mas sabe que o único caminho para preservar a inocência de uma menina de 14
anos, é pô-la naquele barco de minério, rumo a Luanda de onde seguirá para
Lisboa na ponte aérea.
Não há saída possível! Aquele barco é a tábua de salvação para a filha, a
sua princesa tagarela!
Num abraço em silêncio, totalmente em silêncio, mãe e filha, resgatam todo
o amor, toda a cumplicidade e, por momentos, esquecem tudo o que existe lá
fora.
Não falam no tempo que estarão separadas, não falam da incerteza desta
viagem, do desconhecido mundo que irá encontrar noutro país que ,embora fale a
mesma língua, nunca viu, nunca cheirou.
Cita, como sempre, tenta ver o lado positivo da vida e com as lágrimas a
correr pela cara, sorri e diz à mãe:
- Deixa lá mãe! O Cabeto (diminutivo que adoptou para
chamar o irmão, Carlos Alberto) foi à tua terra passear, mas foi sempre de
avião. Olha para mim, sou muito mais importante: vou de comboio, de barco e de
avião. Diz-lhe isso ao chegares a casa! E não te esqueças: no Natal, quando
regressar, quero aqueles óculos de sol amarelos para parecer um girassol!
A mãe sorriu! Percebeu (ah! como as mães percebem tudo...) que a tagarelice
era para esconder o medo que lhe assaltava a alma. A dor da partida era visceral,
física, insuportável...
III
- Com licença...por favor, deixe-me passar...
Cita correu, furou por entre aquele
mar de gente para chegar ao topo do barco. Precisava de acenar à mãe; precisava
de a ver; precisava de lhe dizer só com o olhar: “Estou aqui, está tudo bem!”
Após enorme esforço, conseguiu um lugar privilegiado. Dali podia ver toda a
costa. No cais, centenas e centenas de contentores com histórias de vida lá
dentro. Irão, também eles, viajar para o outo lado do oceano.
Fixou o olhar num vulto, com calças de sarja azul e uma camisola
cor-de-rosa! Era a sua mãe, sentada em cima de um contentor.
Levantou a mão e acenou-lhe... acenou-lhe... acenou-lhe…
À medida que o barco de minério sulcava as ondas, aquele vulto foi ficando
cada vez mais um ponto pequeno, pequeníssimo na linha do horizonte.
Foi diminuindo, diminuindo, diminuindo... já nada havia ao fundo... só o mar!
- Assim ficas com dor no braço de
tanto acenar. Já não está lá, vês? É só mar! - Diz-lhe a senhora que,
supostamente, seria o seu anjo da guarda nesta viagem!
Cita, olhou-a e, com o rosto cheio de lágrimas, respondeu-lhe:
- Não preciso de a ver para saber
que ela está lá!
Baixou o braço, aconchegou o cão de peluche contra o peito e deixou-se
ficar ali, naquele lugar e, durante dois dias, ali ficou olhando a linha do
horizonte: e via a mãe, sentada num contentor, a fazer-lhe adeus!
E a viagem tinha começado! A viagem de uma vida, para toda a vida!
Elsa Martins Esteves
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