sábado, 19 de maio de 2012

Memória de Sá-Carneiro

Nasceu há 122 anos, contados ao dia de hoje. Um número sem nada de redondo. Apenas uma desculpa para o lembrar e à sua curta vida de 26 anos, um velho por dentro, cheio da morte que versou e prosou e a cujas braços se entregou sem pestanejar, numa ânsia de viagem. Chamava-se Mário de Sá-Carneiro.


"Quando eu morrer", diz o poema, "batam em latas, / Rompam aos saltos e aos pinotes, / Façam estalar no ar chicotes, / Chamem palhaços e acrobatas! / Que o meu caixão vá sobre um burro / Ajaezado à andaluza... / A um morto nada se recusa. / E eu quero por força ir de burro!"

António Quadros escreve: "Não foi de burro, ajaezado à andaluza, mas de smoking, isto é, de grande burguês em traje de gala ou 'lepidóptero' engalanado, o que ia dar ao mesmo, que Mário de Sá-Carneiro se matou, preparando de antemão um efeito teatral". À terceira fora de vez, era dia manchado de Abril.

Como se explica esta obsessão pela morte? Em "Página de Um Suicida", incluído em "Princípio e Outros Contos", das Publicações Europa-América, gato escondido com rabo de fora na 'voz' da personagem Lourenço Furtado, o poeta revela-se. Ou não?

"Afinal, sou simplesmente uma vítima da época, nada mais... O meu espírito é um espírito aventuroso e investigador por excelência. Se eu tivesse nascido no século XV descobriria novos mares, novos continentes...
No começo do século XIX teria inventado talvez o caminho-de-ferro... Há poucos anos mesmo, ainda teria com que me ocupar: os automóveis, a telegrafia-sem-fios... Mas agora... agora que me resta?... A aviação?... Pf... essa já nada me interessa depois dos últimos resultados dos Wright e de Farman... Para o Pólo Sul partiu há pouco o Dr. Charcot...
Não há dúvida: a minha coisa interessante que existe actualmente na vida é a morte!... Pois bem, serei eu o primeiro explorador dessa região misteriosa, completamente desconhecida...
E que viagem tão cómoda! Nem sequer é preciso arranjar as malas!"

No conto, um tiro. Na vida, cinco frascos de arseniato de estricnina, comprados em diversas farmácias. Sim, que a um morto nada se recusa. Sequer o veneno da memória.

Sem comentários:

Enviar um comentário