sexta-feira, 11 de maio de 2012

in No silêncio de Deus

Sara esteve em Amesterdão uma única vez. Fazia sol então e os canais tinham uma vida invejável, barcaças de casais a rir. É a sua memória mais viva: a inveja dos outros. Não gosta de reconhecer o sentimento. O mais não se orgulharia dela. A bondade é uma busca constante, como um dever. Ser simpática é o equivalente a lavar os dentes. Todos os pensamentos mais estranhos, todos os cenários cruéis, a inveja e a intolerância, a soberba e a vaidade são a sua essência, vivem nela, apesar de não estarem à vista. Sara acredita nisso. Quando vê uma criança retrai-se. A pureza assusta-a. Sabe que Deus não a ouve, sabe que a salvação está para lá das suas possibilidades. Israel foi um erro. Nada mudará. Sara será sempre um resto do humano. Nada mais do que isso. Ainda recorda as palavras da mãe no seu décimo aniversário. 

Não é o anjo que o pai pensa que ela é. É bonita. Mas não é boa. Nenhuma de nós o é.

Sara percebe agora a dimensão drástica da frase. Uma sentença. Anda há anos a fugir dessa verdade. Por vezes convence-se de que não é verdade. A mãe tinha distúrbios, vivia dentro de uma caixa de comprimidos, ciclos positivos, ciclos negativos. Os loucos não estão mais próximos de Deus, pois não? Sara, a fingida, ao colo do pai, mimada pela normalidade, segura pela bondade do pai.
Em frente ao espelho do exíguo quarto de hotel despe-se com lentidão. É aqui que está o seu melhor. Quanto tempo durará? A pele ficará menos firme, as rugas acumular-se-ão junto aos olhos, nos cantos dos lábios.

Your old tricks won’t work anymore.



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