Assim
como nós criamos as línguas, também as línguas nos criam a nós. Mesmo que não o
façamos de forma deliberada, todos tendemos a seleccionar palavras que
utilizamos com maior frequência, e esse uso forma-nos ou deforma-nos, no corpo
e no espírito. Um carroceiro, que os dicionários definem, quer como aquele que
conduz carroças, quer como aquele que se comporta de forma grosseira, adquire
pouco a pouco a natureza áspera dos tabuísmos que utiliza. Tabuísmo, poupo-vos
por esta vez a consulta ao dicionário, é como chamamos às palavras e locuções
consideradas chulas ou demasiado agressivas. Palavrões. Um político ganha com o
tempo o aspecto esquivo, cinzento, pouco confiável, de vocábulos como
constitucionalmente, compromisso, fracturante, etc. (longo bocejo). Os palhaços
usam, ou deixam-se usar, por palavras largas e coloridas, (a prosódia é
intolerável). Os militares – como os rappers
– preferem monossílabos, acrónimos, termos sólidos e duros, como guerra, de
origem germânica, quase um berro, com aqueles dois erres espinhosos que
arranham a garganta.
Podemos
alargar esta tese para as diferentes nações, Claro que quanto mais ampla for a
generalização maior o risco de errar. Feito o aviso, não custa atribuir a
obstinada melancolia dos portugueses ao uso desregrado da palavra saudade, no
fado, na poesia, no discurso dos filósofos e dos políticos. Seria interessante
estudar o quanto o culto à saudade contrariou, vem contrariando, o esforço para
desenvolver Portugal. Já a famosa arrogância e optimismo dos angolanos poderia
dever-se à insistência em termos como bué (“Angola kuia bué!”), futuro,
esperança ou vitória. No que respeita à alegria dos brasileiros, poderíamos
talvez imputá-la a duas ou três palavras fortes que acompanham desde há muito a
construção e o crescimento do país: mulato/mulata, bunda, carnaval.
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