terça-feira, 8 de maio de 2012

in Milagrário Pessoal

          Gosto desta palavra: afeiçoar, e do seu duplo sentido: tanto significa desenvolver afecto, como moldar-se. Porque é isto que acontece – quando nos afeiçoamos muito a alguém ou a alguma coisa vamos ganhando pouco a pouco a forma dessa pessoa ou dessa coisa. Um homem e uma esposa chegam a tornar-se, ao fim de cinquenta anos de vida em comum, tão semelhantes como irmãos. Um cão velho imita a tosse do dono.
            Assim como nós criamos as línguas, também as línguas nos criam a nós. Mesmo que não o façamos de forma deliberada, todos tendemos a seleccionar palavras que utilizamos com maior frequência, e esse uso forma-nos ou deforma-nos, no corpo e no espírito. Um carroceiro, que os dicionários definem, quer como aquele que conduz carroças, quer como aquele que se comporta de forma grosseira, adquire pouco a pouco a natureza áspera dos tabuísmos que utiliza. Tabuísmo, poupo-vos por esta vez a consulta ao dicionário, é como chamamos às palavras e locuções consideradas chulas ou demasiado agressivas. Palavrões. Um político ganha com o tempo o aspecto esquivo, cinzento, pouco confiável, de vocábulos como constitucionalmente, compromisso, fracturante, etc. (longo bocejo). Os palhaços usam, ou deixam-se usar, por palavras largas e coloridas, (a prosódia é intolerável). Os militares – como os rappers – preferem monossílabos, acrónimos, termos sólidos e duros, como guerra, de origem germânica, quase um berro, com aqueles dois erres espinhosos que arranham a garganta.
            Podemos alargar esta tese para as diferentes nações, Claro que quanto mais ampla for a generalização maior o risco de errar. Feito o aviso, não custa atribuir a obstinada melancolia dos portugueses ao uso desregrado da palavra saudade, no fado, na poesia, no discurso dos filósofos e dos políticos. Seria interessante estudar o quanto o culto à saudade contrariou, vem contrariando, o esforço para desenvolver Portugal. Já a famosa arrogância e optimismo dos angolanos poderia dever-se à insistência em termos como bué (“Angola kuia bué!”), futuro, esperança ou vitória. No que respeita à alegria dos brasileiros, poderíamos talvez imputá-la a duas ou três palavras fortes que acompanham desde há muito a construção e o crescimento do país: mulato/mulata, bunda, carnaval.


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