Parte
Primeira:
Coimbra, não sendo a cidade berço foi o casulo de
descanso eterno que D. Afonso Henriques escolheu. E ali está, no lado oposto ao
seu filho, na bela Igreja de Santa Cruz, feita de pedra morena, outrora Mosteiro e, por isso, fora das portas da
antiga cidade. Por definição um Mosteiro situa-se fora da traça original das muralharas
de uma cidade, ao contrário de um Convento que estará sempre dentro da malha
urbana. Por esta diferença é fácil perceber o desenho originário das urbes e é garantido espantarmo-nos com Coimbra. Fora
do Arco da porta de Almedina, estendia o
Mosteiro a sua propriedade até ao Jardim da Sereia, Quinta de Santa Cruz de sua
graça primeira. Um jardim que já foi bonito mas também perigoso. Hoje tem um pouco
menos de encanto mas mais segurança na passagem. Fecha a Praça da República e
abre-se ingreme para si, com a fonte da Sereia por postal. As sereias, essas
criaturas míticas e desviantes da concentração marinheira, musas de canto
hipnotizante, transformadas aqui, por interpretação poética, nas figuras de um
tritão e de um golfinho, fazendo esquecer o nome original da fonte: A Fonte das
Nogueiras. Três estátuas à entrada, a Fé, a Caridade e a Esperança. Há bancos
de jardim, há infindo espaço para sentar no chão, para ler, para escrever, para fotografar. Do cimo acompanha-se, pelo
olhar em frente, o frenesim da Praça da República até perder a noção de fim da
Av. Sá da Bandeira. Pela esquerda da Avenida, como quem desce, apresenta-se o Teatro Académico Gil Vicente seguido da
Associação Académica de Coimbra. Continuamos até encontrar a estátua do Leão em
homenagem a Luís Vaz de Camões.
O Leão de Camões é uma estátua erguida pelos
estudantes desta cidade, em 1880, aquando do assinalar dos 300 anos volvidos
sobre a morte de Luís Vaz. Inicialmente encontrava-se onde hoje é a Faculdade
de Letras, outrora um jardim, toda uma parte que desapareceu no Estado Novo aquando da
destruição da Alta. Não foi adaptada, requalificada, não. Foi destruída. Ali nasceram os edificios novos da Universidade, mas sem cuidado nem contexto. A estátua passou dali para a Rua do Arco da Traição,
paredes meias com o Instituto Justiça e Paz. Da localização que hoje tem
sabe-se que não será definitiva mas ignora-se a nova “casa”. Deste ponto da
Avenida parto para a rua da Misericórdia onde me vou sentar na “ varanda” mínima
da Torre de Anto. A casa do estudante António Nobre. Daqui sim, iniciar uma
longa estória, do Choupal até à Lapa, dos Penedos à Saudade. Falar da Questão
Coimbrã, de Eça, de Antero, de Feliciano de Castilho. Não esquecendo o Padre
António Vieira que deixei para trás. Passarei pela casa de Fernando Namora, pela
Sé velha de José Afonso, pelos recantos de Miguel Torga. Não me esquecerei de
Almeida Garrett nem de Teófilo Braga. Trindade Coelho também caminhará comigo,
ele e a Carolina Michaelis, João de Deus e Vergílio Ferreira. Até Camilo
Castelo Branco. Em cada rua, em cada jardim. Dos Estudantes, da Liberdade, dos
movimentos circulares. Dos grupos de teatro à música, Dos segredos aos enredos
literários. De Carlos Paredes, porque não me perdoaria se não falasse nele. E
da história da guitarra coimbrã e das suas belíssimas trovas. Dos poemas. De todos quantos conseguir.
Um apontamento sobre três espaços antes de marcar
lugar para o fim da semana: O primeiro, Café
Santa Cruz, antigo refeitório do Antigo Mosteiro, paredes meias com a
Igreja. Palco, em tempos, de importantes decisões e tertúlias literárias. Hoje
espaço de conversas de café, de fado de Coimbra, de exposições e livros. É um
encanto aberto para a praça 8 de Maio. O segundo, a casa de Fados À Capella, criado numa antiga
capela privada onde ocorrem eventos culturais e claro está, cordas dedilhadas
em minúcia. O terceiro, no último andar de uma antiga capela na Rua da Sofia,
hoje espaço comercial, um café cuja entrada se faz ao nível da rua, quase sem
se dar conta da fachada do edifício, mas que mantém aquele recanto inviolado de
nichos e pedra cheia de história. Em qualquer um destes espaços o canto de
escrita eremita é perfeito. Coimbra é isto, é o eterno transformar e chamar a
si, não se destrói, adequa-se. E ai de alguém que fale em profanação porque
aqui a liberdade teve um custo mais alto do que se pensa, porque aqui a
identidade sempre se chamou Coimbra. Quem a veio destruir quis cala-la, e ela
respondeu com toda a força que tinha e, em vez de também destruir, adaptou.
Ela, Coimbra, quando se liberta e grita alto, quando explode no Mondego, toma a
figura de mulher guerreira. Coimbra não é uma cidade, Coimbra é identidade.
Até para a semana, com datas e eventos, com companheiros
de crónica e com a agenda debaixo do braço.
*Foto: Jardim das Nogueiras ou da Sereia.
Muito Bom! Também não sou de cá mas moro cá...tenho os espaços enunciados como sendo dos meus preferidos...Surpreendeu-me a referencia à casa de Anto porque normalmente é esquecida assim como o autor António Nobre que lhe deu o nome...Aguardo os próximos, ansiosamente!*
ResponderEliminar