terça-feira, 10 de abril de 2012

O Sr. Luís Augusto Fonseca

O Sr. Fonseca hoje fez 50 anos e deu-lhe por pensar na vida…

… pensou que não gosta do seu trabalho…

É bancário porque filho de um bancário e neto de um bancário, profissão que com o tempo, aparentemente, foi perdendo estatuto. O seu avô foi um senhor, era o que ouvia de todas as bocas, o seu pai simplesmente patético, coisa que ninguém se atrevia a dizer, mas encolhiam os ombros como quem diz paciência.

Foi o pai que o meteu no Banco e nunca mais de lá conseguiu sair.

Às vezes pensa que se não fosse bancário estaria a lavar pratos na cozinha de um qualquer restaurante… pensa nas coisas que sabe fazer… e… lavar pratos!… mas já existem máquinas para lavar pratos, e garfos, e facas, e colheres, de sopa, de sobremesa, de chá, de café, e copos, de água, de vinho, de champanhe, e travessas, e terrinas, e molheiras, e sopeiras, e saladeiras…

… pensou que não gosta da mulher…

Não era má rapariga, mas também não era bonita, nem com a idade ganhou graça… foi a mãe que lha escolheu, Luis Augusto, estás na idade de assentar.

E ele assentou.

Não se fizeram infelizes, mas também não se fizeram felizes.

Foi-lhe infiel, exactamente duas vezes:

Uma colega de trabalho que foi colocada no seu balcão enquanto outra gozava a licença de parto, quatro meses e os fins de tarde das Quintas passados numa pensão no centro da cidade… tudo pobre e gasto… em casa disse que se tinha inscrito num ginásio, com um colega que, por mera sorte, não morreu de enfarte dois meses antes, nem perguntaram o nome do colega… um colchão como um tenor desafinado, umas cortinas tristíssimas.

Depois o tempo da licença terminou e a colega voltou ao seu balcão de origem, do outro lado da ponte, e não lhe dava jeito nenhum frequentar um ginásio do outro lado da ponte… felizmente, que Deus lhe perdoe os maus pensamentos, mas cada um vai na sua vez, não é?, o colega do enfarte teve um segundo enfarte… deixou de ter companhia para o ginásio, deixou de ir ao ginásio.

Dois anos depois, a recepcionista do dentista, e enquanto durou o tratamento de três molares… desvitalizados… e novamente às Quintas, o dia do dentista, o dia que supostamente mais lhe convinha… não sabe dizer porquê, nunca fez nem faz nada especial depois do trabalho, não sabe o que gosta de fazer… gosta de lavar pratos… apenas pratos… só se deu o cuidado de não reservar quarto na mesma pensão… e apesar do seu cuidado, mais uma vez… as cortinas… tristíssimas.

… depois vieram os filhos…

Primeiro o rapaz, depois a rapariga, um casal, como quase todos os matrimónios abençoados por Deus da sua geração, matrimónios que fizeram filhos, como quem compra sapatos e botas e luvas, aos pares.

E não lhe parecem maus meninos, nem mal criados, simplesmente não os consegue perceber, mesmo quando os abraça, não lhes percebe os corpos… e nunca lhes percebeu os olhares…

… e também já não são meninos, o mais velho anunciou no almoço do Domingo que passou que vai ser pai.

… depois não veio mais nada…

Sente-se vazio… um vazio diferente… um vazio mais vazio… tenta justificar a si próprio… pelo menos a si próprio… a existência… pensa na vida que levou… e concluiu, com uma sinceridade atroz, que apenas se orgulha de, depois de feita a tropa, nunca se ter constipado.




3 comentários:

  1. Cara Raquel,
    Gostei!
    Um belo retrato de muito boa gente que conheço (ou penso conhecer? dúvidas!)
    Abraço

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  2. É um texto bem escrito e que obriga a pensar no que conseguimos, o não, fazer da nossa vida, em função do sentido...que, em meu entender só se ganha, verdadeiramente,quando passa pela dádiva ao outro, transferindo a atênção do nosso umbigo,coisa que o nosso Fonseca não conseguiu, acabando por construir-se um homenzinho vulgar, entediado, exibindo como troféu maior da sua existência, pasme-se, o nunca se ter constipado!
    É um belo retrato da mediocridade:salário médio, umas facadazitas no casamento, que não resultou de escolha sua,os filhos, que lhe escorreram por acaso de dois espermatozóides mais atrevidos...em suma: o fruto de coisas, que lhe aconteceram e que o acomodaram.

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  3. Bom texto.Infelizmente este é um país feito e cheio de "senhores fonsecas". talvez por isso o nosso deambular, sempre de cabeça baixa, ombros descaídos, mãos nos bolsos, vazios de euros e vazios de alma.

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