quarta-feira, 14 de março de 2012

in Pedro Páramo

- Não sei, Juan Preciado. Havia tantos anos que não levantava a cara, que me esqueci do céu. E mesmo que o tivesse feito, que teria ganho? O céu está tão alto, e os meus olhos tão resignados, que vivia contente só de saber onde ficava a terra. Além disso perdi todo o interesse desde que o padre Rentería me assegurou que jamais conheceria a glória. Que nem sequer havia de vê-la... por causa dos meus pecados; mas ele não mo devia ter dito. Já de si a vida é dura. A única coisa que faz uma pessoa mexer os pés é a esperança de que, ao morrer, a levem de um lugar para o outro; mas quando fecham uma porta a uma pessoa e a que fica aberta é apenas a do inferno, mais valia não ter nascido...
- E a tua alma? Para onde julgas que foi?
- Deve andar errando pela terra como tantas outras, à procura de vivos que rezem por ela. Talvez me odeie pelos maus tratos que lhe dei, mas isso já não me preocupa. Descansei dos vícios dos seus remorsos. Amargava-me mesmo o pouco que comia, e tornavam-se-me insuportáveis as noites, enchendo-mas de pensamentos inquietantes com figuras de condenados e coisas parecidas. Quando me sentei para morrer, ela pediu que me levantasse e continuasse a arrastar a vida, como se ainda esperasse algum milagre que me purificasse das culpas. Nem sequer tentei: 'Termina aqui o caminho', disse-lhe, 'Já não tenho forças para mais'. E abri a boca para que se fosse embora. E foi-se. Senti quando me caiu nas mãos o fiozinho de sangue com que estava amarrada ao meu coração.



4 comentários:

  1. "Pedro Páramo", sem dúvida um dos livros da minha vida e um daqueles (a)casos que mostram que às vezes são os livros que nos escolhem a nós. Andava eu na altura às voltas com o Húmus de Raul Brandão e também por coincidência a mergulhar no mundo de Alvarez quando Juan Rulfo me chegou às mãos. Não sendo de todo, uma "especialista na matéria" não consigo deixar de encontrar pontos convergentes no universo dos três criadores e a mesma magia grandiosa...

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  2. Muito curioso o seu comentário... refíro-me a tríade de escritores a que faz referência... é que ando há uns tempo com vontade de pegar no Raul Brandão... alguma sugestão para abrir a hostilidade e o encanto?

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