segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O Deus das Pequenas Coisas - Livro do mês



Como o Pedro diz, é preciso tempo para ler este livro. É uma densa floresta narrativa onde Arundhati Roy, com uma mestria alucinante e em jeito de Hansel e Gretel, vai espalhando migalhas por trilhos pouco lineares mas meticulosamente escolhidos. O modo brilhante como, pelo caminho que a Autora nos conduz, vamos ouvindo sons e sentindo os vultos do que está para vir, faz parte de uma experiência literária que eu senti intensamente. E tanto que desejei ignorar aqueles instintos premonitórios provocados.

"O Deus das pequenas coisas" é uma obra de tensões e equilíbrios. Confronta gerações, estratos sociais, mentalidades e valores (um pai de olho hipotecado que se oferece para matar o filho), as pronúncias iletradas ou os pensamentos infantis transliterados só para os nossos olhos sorrirem, modos de amar (a violência, o amor do sangue e do duplo um, o amor para além das leis que estipulam quem deve ser amado, e como, e quanto), e até formas de odiar e de provar a vingança, que nunca pensei poderem conter tanta beleza como aquela que vi no silêncio de Estha e na consumação do(s) amor(es). Percebi também que sempre que o equilíbrio desapareceu, algo partiu.

Por outro lado, enquanto movimentava toda a engrenagem daquela trama inserida num contexto histórico e geográfico muito específico, Arundhati Roy conseguiu criar personagens soberbas de tão naturais e permeáveis que são. As evoluções sofridas, sempre sustentadas, são particularmente visíveis nos gémeos dizigóticos - um quente e um frio -  o que confere à história um realismo apenas encontrado em grandes romances. E conseguiu ultrapassar as grandes tragédias ao terminar com numa nostalgia futura, num doce "Amanhã". Mesmo que ele nunca chegue, o "Amanhã" aconteceu.

Por fim, tenho que confessar que me senti incapaz de absorver toda a riqueza desta obra: não fui suficientemente paciente para digerir com moderação, nem tão pouco me empenhei no trabalho de casa necessário para compreender muitas das suas referências. Em ambos os casos apenas estou a reconhecer o defeito da leitora, não da obra.

Só mais uma nota, que o texto já vai longo: é um óptimo livro para quem gosta de sublinhar. E sem spoilers, apetece-me partilhar:

"Mas agora Joe estava morto. Um buraco em forma de Joe no universo." (não é spoiler, o Joe não é assim tão importante)

"- Estás a ter um pesadelo-sesta - informou-a a filha.
- Não era um pesadelo - disse Ammu. - Era um sonho.
- Estha pensou que tu estavas a morrer.
- Parecias tão triste - disse Estha.
- Estava feliz - disse Ammu, e deu-se conta de que fora.
- Ammu, quando se está feliz num sonho, isso conta? - perguntou Estha.
- Isso conta?
 - A felicidade - conta?
Ela sabia muito bem o que o seu filho de poupa desarranjada queria dizer.
Porque a verdade é que só conta o que conta.
A sabedoria simples e inabalável das crianças.
Quando se come peixe num sonho, isso conta? Quer isso dizer que se comeu peixe?"

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