terça-feira, 10 de janeiro de 2012

in O Mecânico

Se calhar estou a maçar-vos com esta conversa, mas pensei que talvez não lhes desagradasse conhecer a oficina. Os produtos saem para as livrarias sem que os leitores conheçam onde e como são feitos, na confusão de uma bancada de arames de períodos, parafusos ao acaso, de adjectivos pelo chão, capítulos inteiros no balde dos desperdícios e cá o rapaz a sair de baixo do romance como o mecânico de sob um carro de motor aberto, com os bolsos cheios de chaves inglesas de canetas, sujo de óleo dos períodos por ajustar e da fuligem das bielas das vivências insuficientemente limpas. Tanto esforço por uma vírgula, um verbo. Tanto obscuro sistema eléctrico que resiste. Tanta incerteza. Tanta aflição. Tanta alguma alegria.

(…)

- Serei capaz?

- Serei capaz de ser capaz?

(…)

Quando eu era estudante de Medicina contavam-me que outrora tiravam as pedras da bexiga por intermédio de um processo designado “litotrícia”, que consistia em introduzir na uretra uma espécie de tenaz e a seguir, às cegas, esmagar as ditas pedras, o que, como é de ver, apenas raramente se conseguia. A escrita é um pouco isso, só temos que persistir até esmagar as pedras todas. Não há compulsão nem inspiração que valha: há ofício e método. E nem sequer é romântico: são os braços sujos até ao cotovelo.

2 comentários:

  1. Raquel,
    essa imagética é muito rica mas talvez dolorosa, sobretudo para quem consigo partilha o gosto pela leitura mas diverge no género...
    Cumps.

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  2. Olá,

    O texto é do ALA, ao caso uma crónica, mas a verdade é que quando o li, foi como um murro no estômago, identifiquei-me completamente com esse burilar doloroso das palavras, tão comparável com o trabalho de pedreiro, de mecânico, de mãos a domesticar objectos-palavras-pedras-peças...
    Cumps.

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