quarta-feira, 9 de novembro de 2011

a-ver-livros: Mas ela não

Imagens de mulheres a ler são mato na história da arte. Garanto. Numas épocas mais do que outras, claro, que depois veio a rádio e a televisão e a net. Há para todos os gostos. De frente, de lado, sentadas, de pé, deitadas, vestidas até ao pescoço, seminuas, em casa, na rua, acompanhadas, sozinhas, serenas, entusiasmadas, entediadas. Todas elas de livro na mão.

Mas ela não. Ela está ali, concentrada, cabelo preso, cabeça apoiada no braço esquerdo, o corpo alongando-se de forma fluida e ao mesmo tempo controlada nas aguarelas da tela. A ler. Mas sabe-se lá a ler o quê. Apenas a ler, alheada de mim e do mundo, o objecto da sua leitura escondido de nós.

Consigo passar horas a olhá-la – é como uma janela aberta para algo maior do que eu. Num momento imagino-a com uma noveleta banal, para entreter tédios. Noutro acho que aprecia poesia e perco-me na ideia de que terá na mão Whitman ou Auden ou Wislawa. Porque não Pessoa ou Sophia? Noutro ainda adivinho um policial sanguinolento recheado de intriga, logo depois quase consigo ver-lhe na mão um volume de ficção científica, arrastando-a pelo espaço sideral atrás de uma criatura qualquer.

A dada altura torno-me prática e ela está decerto entretida com um livro de viagens, preparando-se para ir correr mundo. Depois melancólica, sei quase de certeza que relê uma carta de amor antiga, daquelas que já não fazem correr lágrimas, apenas doem por dentro.

Ela sou eu, por isso não consigo deixar de a olhar. E não entendo como é que Gershon Benjamin soube pintar-me sem me conhecer.

*** Nascido na Roménia no início de 1899 e imigrado no Canadá com apenas dois anos, corriam já os loucos 20 na louca Nova Iorque quando Gershon Benjamin por lá se instalou com a mulher, Zelda. Com o melhor amigo, o também pintor Milton Avery, e respectiva companheira, Sally, remou contra as marés das tendências artísticas das várias épocas, acreditando apenas na arte como linguagem universal. Um tipo fora do tempo, fora do sítio – que, ironicamente, acabaria por morrer em 1985 ‘catalogado’ como expressionista modernista americano, mais tarde até com direito a uma fundação criada pela viúva e pela filha dela para preservar e divulgar a sua memória.

Rezam os arquivos que era um ávido leitor.

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