sexta-feira, 2 de setembro de 2011

No Meu Peito Não Cabem Pássaros


Há um cometa que passa, há Karl, Jorge e Fernando e tantas ou mais cidades.


KARL

Karl está em Nova Iorque, não nasceu nessa cidade, condição que faz dele emigrante.

“Sente-se levemente ingénuo por arriscar tanto por um dólar, depois apercebe-se de que trabalha a oitenta metros do solo e há quem pesque em alto mar, quem coma do pugilato e quem escolha a vida militar. As cidades estão cheias de gente que arrisca muito por pouco e Nova Iorque parece um congresso.”

“Quando alguém pergunta “quem és?” está na realidade a perguntar “o que fazes?””

“Há sempre uma vibração ao longe, como se cavalos passassem na rua onde mora. É muito difícil dormir com cavalos em redor da cama.”

“Sempre teve um beber triste, de chorar e lembrar o passado.”

“No banco de jardim está Karl deitado e tudo o que é seu.”

“Pensa que em poucos anos deixou de ser menino para ser desgraçado e já não brinca com ninguém.”

“A Karl repugna-lhe a caridade virada a si, mas entre a fome e os escrúpulos ganha sempre a fome.”

“- Enfia os sermões no cu, ó pregador, e tu, rapazinho, despe o casaco e arregaça as mangas, agarra-te à vassoura, que está rija à tua espera.”

“Karl não sabe nada de mulheres, pelo menos nada que seja verdadeiro ou útil. Sabe como se apresentam e como falam, sabe alguma coisa dos seus corpos e para que servem, mas não sabe mais nada.”

“Quando um homem pára e olha para cima é porque é louco ou artista, ou porque o céu está a arder.”

“Sente-se um silêncio impossível, um silêncio que desafia a cidade inteira.”

“Se o mundo acabar, que acabe, mas que nos leve de barriga cheia e nos dispense a metafísica.”

“A voz diz-lhe que procure uma mulher para poder morrer acompanhado.”

“Uma mulher há-de salvá-lo de acordar com sigo e de morrer sem nada. Quando o céu se faz inferno, os olhos precisam de fugir e uma mulher é um lugar para fugir com os olhos.”

“Pode um homem voltar pela razão exacta que partiu?”

“Todas as cicatrizes são troféus, representam vitórias contra o que nos vem de fora. Devíamos mostrá-las de cada vez que conhecemos alguém, chamo-me assim e tenho sobrevivido.”


JORGE

Jorge, ainda criança, encontramo-lo, como Karl, no mesmo lado do mundo mas no hemisfério sul.

“As histórias da avó Fanny servem-lhe as fantasias... O tão criança que é impede-o de se imaginar a si exactamente, com o seu corpo pequeno e frágil, um corpo tão incapaz de mudar homens de sítio.”

“Jorge tem medo de encher a cabeça. Uma frase ouvida muitas vezes aos adultos inquietou-o, “a cabeça não chega para tudo””.

“Há alegria nos pátios de todas as escolas e infelicidade no pátio de todas as escolas.”

“O menino triste que é Jorge observa Roberto com encanto, foragidos os dois da lógica concêntrica, olham-se e sorriem com pouco.”

“O coro continua por algum tempo, misturado com gritos e risos e o som surdo de carne contra carne, é tudo tão rápido e tão forte dentro de Jorge, o ardor dos golpes e dos insultos, a humilhação de ser riso de tantas bocas.”

“... fica a raiva muda a chorar para dentro. Algum sangue, uma camisa rasgada e por dentro tudo mudado.”

“Roberto sente duas mãos nas costas e uma força grande que vem nelas. O Seu corpo atira-se para a frente com as pernas que ficam atrás. De repente vê tudo às voltas, os degraus, o tecto, as paredes, de novo os degraus, de novo o tecto, até já não ver nada.”

“De tudo o que lhe dói são mesmo as pernas que se salvam, não lhes sente dor nem nada, são o melhor lugar de todo o corpo.”.

“Vista à distância de alguns anos e muitos quilómetros, Buenos-Aires é uma cidade infância. As ruas da cidade mediam-se em passos curtos de calções e as casas e as árvores eram gigantes que se olhavam debaixo.”

“Os meninos de Genebra não tomam banho no lago, foi o primeiro espanto. Afinal, as infâncias não são todas iguais e há lagos sem meninos a nadar. Pareceu-lhe um desperdício de lago ou de infância. Depois percebeu que as vidas suíças são cheias de tudo, dinheiro, livros, beleza, jardins, pastéis e licores. Com tanto tudo, às vezes não apetece fazer nada.”

“Quantos anos pode uma cidade existir sem ser vista?”

“A beleza é a moeda de troca da humanidade. Nenhum homem é recordado pelo que comeu ou fodeu, mas alguns são-no pelo que pensaram ou criaram.”

“As cidades recuperam a virgindade com os anos de ausência, se é que Buenos Aires alguma vez foi virgem.”

“Os pés a descobrir caminhos e memórias de caminhos, a infância a voltear-lhe os passos como um cão que revê o dono.”

“Em quase todas essas milongas alguém se levanta numa hora favorável e, com a voz arrastada, pede à orquestra o Tango de los mal vividos.”

“Por fim lá se chega à idade de ver a vida pelo que não chegou a ser. O presente é terrivelmente condicionado pelo passado e por tantas leviandades cometidas sobre o tempo. Tudo a que um dia se brincou acaba por ser só memória e caminho, degrau de uma escada sempre a estreitar. Depois um homem senta-se à mesa e escreve por vingança contra si mesmo – para viver outras vidas, como dizem alguns.”


FERNANDO

“A viagem chegou ao fim e Lisboa é o fim do mar.” E encontramos Fernando.

“Fernando não foi nada durante a viagem, apenas olhos de ver e uma cabeça de inventar filosofias.”

“Viver num sítio é ser esse sítio, emprestar-lhe uma alma e receber outra em troca. As biografias deviam ordenar-se por lugares, e não por datas. Nesta rua fui assim, numa outra fui diverso. Ninguém sabe descrever uma cidade, são as cidades que nos descreve a nós.

Lá fora vai um mundo de outros que fazem milhares de gestos necessários: caminham, comem respiram e vivem as vidas que podem viver. A vida é uma dádiva que requer manutenção, precisa de gestos pequenos como dar corda ao relógio ou sorrir a quem passa.”

“Fernando não sabe que espantalho afugentou tanto pássaro, se o médico, se o padre, se um espantalho maior do que todos os outros. Vem-lhe à cabeça um sacrilégio de fazer rir, Jesus Cristo espantalho na cruz. Muito medo hão-de ter tido os pássaros. Deve ter sido um ano bom de azeite e de fruta, não há porque enjeitar um milagre se tiver serventia.”

“O professor fala com voz de também não estar ali. As palavras saem-lhe umas atrás das outras, postas em fila há muito tempo.”

“Fernando passou o resto do dia a encontrar sinédoques para onde quer que olhasse. “Como toda a gente” pensou. “A vida é dura”, “Um homem não é de ferro”, “Deus é grande”. Mas há quem não tenha uma vida dura e seja de ferro e tenha um deus pequenino.”

“O senhor é sem dúvida dotado de uma finíssima inteligência, não há como negá-lo. O estilo refinado da sua escrita eleva a prosa e dá cor e alma a tudo o que trata. O senhor Fernando tem mão e cabeça de poeta, mas infelizmente deixa que seja a poesia a tomar conta de si, e não o contrário, como seria desejável.

O mundo, senhor Fernando, é para ser entendido, não inventado.”

“Como pode alguém domar a poesia?”

“A tia diz-lhe que sim e acena com a cabeça já longe. Um quarto, um emprego, um sobrinho a querer ser grande, o menino Fernando a deixar-lhe a vida como ela a tinha, uma vida de tia a fazer renda.”

“Em casa não há muito à sua espera, um caldo por aquecer deixado pela dona Aurora, uma garrafa de vinho, silêncio e horas.”

“Fernando falta-lhe uma mulher pela vida. Faltam-lhe muitas mulheres pela vida, diurnas, nocturnas, quotidianas, esporádicas. Tal é a carência.”

“Há que fugir e levar as ideias para fora, fugir das casas e dos carros, da gente e das avenidas, tirar aos olhos o que conhecem e já não sabem ver.”

“O dinheiro que eu te dou diz-me que tu existes, que eu saí de casa em vez de sonhar.”

“ A verdade é que todos têm medo, quase todos sentem que devem ter medo, do fim ou da falta dele.”

“Fernando queria ser a engomadeira que se benze ou o sapateiro que corre para casa, mas é o homem que já sabia e que dobra o jornal em quatro.

O cometa será uma grande desilusão, um desperdício de espanto...”

“É ele quem lhe fala, não tenhas medo, diz, não é hoje que se acaba o mundo.”

“Não é fácil dormir com uma mulher. Não é sequer fácil dormir com a ideia de uma mulher.”

“... e a casa vazia de uma mulher. A cama feita, a louça lavada, nada ficou da sua passagem.”

“É muito frágil a ordem da poesia.”

A minha opinião:

Foi um livro muito bom de ler.

Simpatizei com todos os personagens, bem apresentados, bem estruturados.

Não deixo de perguntar-me, talvez um dia de perguntar-te, porque motivo chamaste Fernando ao personagem que vive a passagem do cometa em Lisboa? J

E gostei da forma e da poesia.

Gosto sempre da poesia na prosa, fundamental, imprescindível.

Uma vez ouvi um poeta (não me lembro qual) dizer, que a poesia é a arte de escolher palavras.

Parece-me que o Nuno Camarneiro soube escolher muito bem as palavras que usou.

Depois, quanto à trama, ficou a apetecer-me mais, mais densidade, mais volume, talvez mais história para contar.


1 comentário:

  1. A personagem de Lisboa chama-se Fernando, pois pretende retratar Fernando Pessoa

    ResponderEliminar