terça-feira, 6 de setembro de 2011

Fábio Ventura e o livro do mês de Julho: "A Boneca de Kokoschka", de Afonso Cruz

[Apenas uma nota: por motivos técnicos alheios ao Fábio, não foi possível ser ele a publicar o texto que redigiu para o nosso blogue. Por isso mesmo, deixo convosco o que ele escreveu.]

"Escritor, músico, cineasta e ilustrador, Afonso Cruz é um dos autores portugueses mais criativos e multifacetados da actualidade. Depois de nos maravilhar com obras como Os Livros que Devoraram o meu Pai (Caminho), A Carne de Deus (Bertrand), Enciclopédia da História Universal (Quetzal) e, mais recentemente, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças (Caminho), decidimos focar a leitura conjunta de Julho no romance A Boneca de Kokoschka, publicado em 2010 pela Quetzal.

O livro tem como base a história verídica de Oskar Kokoschka, um pintor austríaco que manda construir uma boneca de tamanho real criada à imagem de Alma Mahler, a mulher que o rejeitou. Kokoschka tratava a boneca como se fosse real, até ao dia em que a destrói, desiludido e enfurecido.

Enquanto avançamos na história, percebemos que Afonso Cruz não foca a história de Kokoschka (o que pode induzir em erro alguns leitores depois da análise da sinopse). Este romance é antes uma multiplicidade de histórias que se interligam. No fundo, é um livro (ou vários) dentro de um livro. A história da boneca de Kokoschka surge aqui como o elo de ligação entre as várias personagens apresentadas (o escritor falhado Mathias Popa, o dono de uma loja de pássaros, Bonifaz Vogel, o rapaz judeu, Isaac Dresner, que se esconde nessa loja em plena 2ª Guerra Mundial, entre outros). Mais do que isso, os devaneios e excentricidades do pintor austríaco são uma metáfora, presente nas várias histórias, para a dificuldade que se tem em distinguir o real e do irreal ou ficção, a obsessão, a desilusão ou os desencontros.


O estilo de Afonso Cruz baseia-se nisso mesmo, como podemos observar nas outras obras. As suas histórias são jogos, labirintos, códigos repletos de metáforas que saltam das páginas dos livros e se tornam algo de muito maior na mente dos leitores mais atentos. E enquanto isso pode afastar um leitor mais casual, acaba por se tornar bastante especial e grandioso para os apreciadores deste género.

A escrita do autor surge melhor que nunca e é talvez um dos seus pontos mais fortes. Afonso Cruz brinca com as palavras e expressões, cria frases cheias de imagens, cheiros e sons que nos fazem sonhar e nos aproximam ainda mais das vidas tristes, mas apaixonadas das personagens e dos cenários desoladores, mas cheios de esperança que vão percorrendo. O seu estilo é tão original que me arrisco a afirmar que Cruz é um dos autores mais criativos da actualidade.

Embora A Boneca de Kokoschka não seja tão especial e envolvente como Os Livros que Devoraram o meu Pai e o Pintor Debaixo do Lava-Loiças, há algo que o distingue dessas obras. O romance surge como um autêntico jogo que obriga o leitor a entrar e intervir na história e fá-lo reflectir sobre o que é real e todas as suas dimensões desde as mais filosóficas às mais pessoais. A juntar às múltiplas actividades de Afonso Cruz referidas no início, talvez possamos acrescentar “criador de sonhos”. É esse o efeito dos seus livros depois de fechá-los."

Fábio Ventura

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