segunda-feira, 4 de julho de 2011

Praça de Londres, conto III - Branca de Neve ou o bom senso imponderavel



Branca de Neve, o terceiro conto de Praça de Londres, é um verdadeiro mito urbano. O mito da ingenuidade e a disparidade entre a segurança de uma vida profissional, a intocável rectidão, maturidade e responsabilidade. E esta é a nossa história e o nosso maior medo. A não conformidade entre o percurso laboral e a redoma das nossas quatro paredes de princípios. A inabalável competência e candura ingénua das boas almas.

Tomemos Lisboa como palco até porque o é de facto neste conto. Mas podia ser outra cidade qualquer, em Portugal ou fora dele. Primeira premissa, somos seres duais. Segunda premissa, o equilíbrio entre o eu para os outros e o eu de nós é uma luta constante. Logo, a dualidade é luta, é disparidade. Ela, jovem com uma carreia de sucesso, brilhante e segura. A mesma jovem que dura será na sua prática profissional, dificilmente não se imbuirá da razão nas questões que equaciona,  não antecipará imponderáveis, não será precisa e eficaz nas decisões que toma. Reflectida e reflexiva. Notoriamente pragmática. A maturidade sincrónica. E a vida lá fora? A vida onde não é responsável por nada nem ninguém a não ser por ela mesma? Essa não se antevê na consagração diária do planeamento eficaz. Nada. Essa vagueia no processo de aprender aprendendo. Vivendo, experimentando. Não há regra nem conselho.

Quem não saberá, por decreto do bom senso, que andar sozinha em ruas desertas, a horas tardias é movimento seguro “até ao dia”? Seguramente o mito é adequado nesse mesmo dia. Sozinha, na rua, a horas tardias. Uma criança, outra, mais uma. Um bando. Noite fria, pobres meninos que procuravam nela a segurança, tanto que ela até ponderou leva-los a casa. De tanto não querermos andar com as defesas nos bolsos, sucumbir ao efeito externo da constante desconfiança, tornamo-nos absolutamente irresponsáveis nas coisas simples. Muitas vezes porque consideramos que perdemos a liberdade. A questão? Liberdade também é segurança, pés na terra, lidar com o real e não com o idílico. O Mundo seria fantástico se não houvesse violência nem fome. Nem crianças a cometerem assaltos, nem gente má, nem falsidade nem segundas intenções. Mas o Mundo é feito por cada um, cada grupo, sub-grupo e todos. Claramente, se continuarmos a pairar na frase estanque “ um dia vou ser feliz” dificilmente seremos e facilmente encontraremos candura, mais por desejo do que na acção em construi-la. Não precisamos de andar com a defesa nos bolsos mas precisamos de falar e conversar com os outros. De ter noção de nós e dos outros, da vida, do que se passa lá fora. Dos limites, da realidade, da construção, das dúvidas, da procura de certezas. A coerência, essa palavra esquisita, tão silogística.

Curiosa a forma como o conto termina. O momento de desconfiança do dia, horas antes, penetrou-lhe a pele. A segunda intenção dele, metaforizada numa garrafa de vinho com o incómodo da expressão “ouro da inocência”. E o fim do dia dela marcado por um assalto, brindado pelo ouro da ingenuidade. Ah, vã dificuldade em lidar com os entes próximos na inversa proporção de confiar na candura de estranhos. É mais simples sim. Em princípio não nos põe à prova, não nos faz lidar com o continuum. Esgota-se ali. “Até ao dia”…

Branca de Neve? Temos esta figura na “roupa”… em demasia. Ah… Lídia Jorge…

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