segunda-feira, 25 de julho de 2011

in Tanta Gente Mariana

“Mas hoje são vinte e quatro de Janeiro e daqui a três ou quatro meses começo a esperar a morte.
Sinto-me só, mais do que nunca, ainda que sempre o estivesse estado.

E enjoada comigo mesma como se me tivesse provado. Um pedaço de pão que depois de se mastigar durante muito tempo acabasse sabendo mal. Sabendo a mim própria, aos meus próprios sucos. Cuspi-me com desagrado para cima da cama e aqui fiquei líquida e espapaçada. É um estado de espírito entre o calmo e desesperado com uma leve ansiedade à mistura. Por vezes sinto medo desta solidão maior do que nunca foi, imensa. Mas já me vi bastante e acabo de reparar que nada mais tenho a dizer-me. Nada mais.

O tempo também parou. Os ponteiros do relógio continuam a andar, mas as horas são iguais, deixaram de existir as que eram feitas para comer e para dormir, as horas de falar com os outros, as de trabalhar – onde isso vai! – e as que eram unicamente minhas. Agora todas me pertencem, não dou por elas. Só há noite e dia, mas a manhã deixou de ser princípio e de limar as arestas às coisas. Tudo parou. Até os carros que passam na rua e as vozes que vêm lá da fora, porque já não entram em mim. Até a chuva que bate na vidraça porque o seu ruído passou a ser silêncio.

Ela aparece às vezes com todos os diminutivos de que dispõe no momento. Porque não vou dar uma voltinha? Quero que me traga alguma coisa da rua? Então não me animo? Está um dia tão lindo, um sol tão quentinho…

…porque me lembrei de repente que não comia desde a véspera e isso pareceu-me extraordinariamente importante.

…dizia que eu esperava demasiado das criaturas de Deus sem pensar que elas eram simples criaturas de Deus.

Papéis bordados a letra miúda que eu desconheço. Mais firme, mais igual, mais redonda. A minha letra de agora engelhou e amoleceu com a minha cara e as minhas mãos, com o meu próprio corpo de seios flácidos, de carne desbotada e só.

E as frases que me ocorriam deram-me de súbito uma grande vontade de rir.
- Estás a sofrer, Mariana – disse o Luís. – Para quê tudo isso. Chora, se te apetece.
Ai a vaidade dos homens! Como havia eu de chorar, porque havia eu de chorar se tinha comigo o meu filho? Porque ele se ia, julgava ele… A vaidade dos homens, a incrível e ridícula vaidade dos homens…

As mãos tremiam-lhe sobre a secretária. Não que fosse um bom homem. Não. Era grosseiro, injusto, autoritário. Simplesmente estava a viver o seu momento de bondade.

Detesto as donas de casa. Se são pobres, esfalfam-se a trabalhar, se são remediadas ou ricas arranjam uma ou mais pessoas para se esfalfarem em seu lugar. De qualquer modo são escravas do trabalho ou então da vigilância com outras escravas à suas ordens. A vida a correr lá fora, os maridos e os filhos a correrem com a vida, metidos nela, e as donas de casa a esfregar, a limpar, a dar brilho aos metais. Ou a ver as outras fazê-lo. Olhe que o pó não está bem limpo. Olhe que a torneira não está bem areada. Isto não pode continuar assim, isto tem de acabar, olá se tem! O que a vida já correu e elas sem a verem. Sem darem por nada. Ficaram sozinhas e não se dão conta. O marido morreu sem nunca ali ter estado, os filhos fugiram para se casar com outras donas de casa que estavam escondidas dentro de raparigas bonitas, alegres e apaixonadas. E a vida continua. Olhe que isto não pode continuar assim, olhe que isto tem de acabar, olá se tem. E os filhos dos filhos a pensarem em fugir e a sonharem com outras raparigas apaixonadas…


A enfermeira tomava profissionalmente parte no meu desgosto.

A enfermeira chegou-se a mim, passou-me a mão pelos cabelos. Gritei-lhe que se fosse embora, gritei tanto que as das outras camas se calaram e durante muito tempo só se ouviram na enfermaria os meus soluços e o choro assustando dos recém-nascidos.

- Verá como ele lhe arranja qualquer coisa… É muito meu amigo, fica até contente por me ser agradável. É uma excelente pessoa. Admirável como homem particular e como homem público… Por que está a rir?
O eterno costume de me rir de coisas que não tinham graça para os outros…

Eu dantes gostava… Talvez ainda gostasse, quem sabe? Entrei por isso, lembro-me agora, só para saber se ainda seria capaz de gostar de qualquer coisa.

Levei as mãos à cara e tirei-as molhadas.

É o meu fim, o único. Não posso escolher outro, não há outro para mim: Pela primeira vez alguém me vem buscar, alguém me procura. Porque não hei-de estar feliz, eu, a escolhida?
E não posso. Sinto-me violada e virgem. Muitas coisas em mim e completamente vazia. Vazia porque até a esperança se foi. A esperança mas não o meu desejo de viver. Mesmo neste quarto que tem um cheiro mau que eu já não sinto, mesmo com o António longe de mim e o Fernandito a beijar uma mãe que não sou eu, mesmo assim eu queria viver. Como sei. Como posso. E a vida a gastar-se cada dia mais, a gastar-se sem eu a ter vivido.

- Pois não acha, D. Mariana? Não acha que era muito melhor?
Eu não sabia do que se tratava mas acenei afirmativamente. Ficou muitíssimo contente.
- Pois é melhor D. Mariana, é melhor, lá nada lhe falta.

Hoje vou para o hospital. Julguei que podia morrer neste quarto mas não, ainda não. Meti na mala o meu retrato talvez me deixem olhar para ele, não sei. A D. Glória vestiu-me como se eu já estivesse morta. Pôs-me o chapéu da pena, embrulhou-me no casaco, fez-me calçar umas meias suas porque eu não tinha nenhumas sem buracos. Estamos ambas à espera do táxi que a Augusta foi buscar. A D. Glória vem também. É como se fôssemos ambas ao meu enterro.”

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