segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

mulher sempre MULHER

M-1
Dentro dos seus braços sentia-me como um pássaro.
Voava. Voava.
Os pássaros parecem bichos felizes quando embalados pelo vento.
Aconteceram-me tantas coisas boas dentro daqueles braços.

M-2
Vi-a uma vez.
Uma única vez.
Tinha a elegância de uma princesa etíope.

M-1
Voava. Voava.

M-2
Fizeram o óbvio. Encontraram-se à porta de um hotel.
Não suporto pessoas óbvias.
Ele deu-lhe um beijo à porta do hotel.
O beijo que não me deu quando saiu de casa.
Eu segui-o.
Não é uma coisa bonita de se fazer.
É como pôr os cotovelos na mesa, não é uma coisa bonita de se fazer.
M-3
Um dia enchi-me de coragem e perguntei-lhe:
Porque é que não suportas o silêncio.
Respondeu-me que tinha lido num livro que para seduzir uma mulher era preciso falar mil horas.

M-5
Por vezes olhamos para alguém em vez de lhe tocar.
O amor não precisa de mãos, não precisa de pés, não precisa de corações.
O amor também não precisa de olhos.
A minha avó dizia: Quem o feio ama, bonito lhe parece.
Pelos vistos o amor tem que ser bonito?

M-4
Num casamento dizem-se coisas até que o fogo queima as mãos.
Eu disse tantas coisas.
Eu disse todas as coisas banais.
Só para dar um exemplo da minha banalidade, eu disse-lhe que era o amor da minha vida.
E disse-o vezes sem conta.
Ainda bem que ninguém se põe a contar as coisas que diz.

M-1
Um dia ofereceu-me um anel.
O anel era redondo.
Redondo, como todos os anéis.
Redondo, como devem ser todos anéis.

M-2
Não suporto pessoas óbvias.

M-4
Eu disse todas as coisas banais.

M-3
Nunca disse a palavra certa.
Talvez porque não há palavras certas ou palavras erradas.
A minha mãe dizia a palavra adequada. O que é incontrariável, a palavra adequada é sempre adequada.
M-2
Não suporto pessoas óbvias.
M-4
Eu acreditava no que dizia.
E somos felizes enquanto acreditamos no que dizemos.
Depois as discussões vão ficando mais amargas e as reconciliações deixam de ser doces.

M-3
A palavra adequada é sempre adequada.

M-4
Eu disse todas as coisas banais.

M-1
Voava. Voava.

M-2
Sim, segui-o.
Podem dizer que fiz o óbvio.
Não suporto pessoas óbvias.

M-1
As pessoas normais não casam com o amor das suas vidas.
As pessoas normais casam com pessoas normais e ficam casadas para o resto da vida.

M-2
Não suporto pessoas óbvias.

M-3
Quando a minha mãe o conheceu foi amor à primeira vista.
Os dois pediram um chá de camomila. Não há coincidências.
Eu pedi um café.
O café estava fraco.
Queimado. Amargo. Morno.
Não gosto do café morno.
Não gosto de chá de camomila.

M-1
Voava. Voava

M-5
Primeiro reparei na beleza dos seus pés.
Talvez o meu amor precise de pés.
Para mim tinha os pés mais bonitos do mundo.
Uns pés 42, talvez 43, sei lá eu que digo, até parece que sou sapateira.
Acho que aconteceu porque estávamos na praia.
Os pés normalmente andam calçados.
Pelo que não é fácil apaixonarmo-nos pelos pés das pessoas.
Eu sentada a um metro de distância dos seus pés, talvez menos, não tenho qualquer sentido para medidas.
Primeiro vi os pés, depois o perfil, talvez o nariz.

M-3
Bebiam o chá e falavam.
Bebiam o chá e sorriam.
Falam, sorriam, falavam, sorriam, falavam, sorriam…
Deixei de os ouvir.
Acho que deixaram de me ver.
Não me lembro bem.

M-1
Voava. Voava.

M-4
O Vinícius para escrever o soneto da Fidelidade casou sete vezes.
Que é como quem diz, reconciliou-se sete vezes com o amor. Inquestionavelmente um homem de fé.
Acho que há qualquer coisa na Bíblia que é setenta vezes sete, mas não me lembro o quê.

M-1
Não sei como é que aqui vim parar.
Então perguntaram-me:
A última coisa de que me lembro?
Fiz um esforço e consegui lembrar-me.
Lembrei-me das casas lá em baixo pequeninas, dos telhados vermelhos, das copas das árvores que pareciam bolinhas verdes, talvez berlindes.
...quase me apeteceu brincar.

M-3
Falavam. Sorriam. Falavam. Sorriam. Falavam. Sorriam.

M-1
Voava. Voava.

M-2
Ela era bonita.
Estava com um vestido lilás, talvez de seda.
Imagino-a no quarto do hotel.
Imagino-a na cama do quarto do hotel.
Consigo vê-la de vestido lilás na cama do quarto do hotel.
Qualquer pessoa dentro de um vestido lilás ficaria ridícula.
Ela ficava simplesmente irresistível.
Confesso que me apeteceu beijá-la também.

M-5
A praia estava cheia.
Mas, de repente ficou vazia.
Um céu cinzento, escuro e cinzento, prometia chuva.
Pelo que apenas os incautos se deixaram ficar na praia.
Eu e ele lado a lado.

M-1
Voava. Voava.

M-3
Há dias passei à frente do café.
Atravessei a rua e vi-os para lá do vidro, estavam na mesma mesa como peixinhos num aquário.
Peixinhos a beber um chá de camomila.
Há pessoas que têm tanto para dizer!
Não entrei. Acho que já disse que não gosto de café morno.
Não quero ser uma pessoa repetitiva.

M-4
“De tudo ao meu amor serei atento”
Num casamento também se dizem frases de poemas.
É só escolher, há tantos poemas de amor.
E quando o amor acaba?
Como é que ficam os poemas?
Continuam a ser ridículos?
Ou deixam de ser poemas de amor?

M-2
Não suporto pessoas óbvias.

M-5
Não choveu.
Já nem o céu cumpre o que promete.
O vento levou as nuvens e as pessoas.
E foi assim que vimos o nosso primeiro pôr-do-sol.
Como vêem os incautos também se apaixonam.
 
Raquel Serejo Martins



2 comentários:

  1. Mais um bonito texto.Escrito de forma original e criativa.
    Já leu o comentário.
    Espero que continue com muito sucesso.
    Isabel

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  2. :)

    gosto do texto mas sobretudo da forma!

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