quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

::Um dia::

Em hora matutina de sol envergonhado saiu de si para a rua crente que um dia mau se adivinhava. Tinha as mãos demasiado frias e sentia um peso desmesurado nos pés. Talvez por isso tenha decidido caminhar. Afinal, a distância até ao destino permitia-lhe tamanha veleidade. A questão é que, inevitavelmente, teria um companheiro no percurso. O seu silêncio cheio de vozes e imagens. E, à medida que avançava o passo, mais imagens e vozes se iam juntando aquela tertúlia solitária. Começou a gesticular, a soltar palavras e trejeitos. Franziu o sobrolho várias vezes, abanou a cabeça, esfregou as mãos. Entrou no café. Ao simples "bom dia" que ecoou no espaço, a sua voz interior apertou-lhe a orelha: “Bom dia? Não me parece nada que vá ser um dia bom…”. Saiu. Voltou ao seu caminho. O efeito da cafeína foi rápido, ou pelo menos perceptível. Um calor momentâneo invadiu-lhe o corpo. Sentiu-se mais equilibrado e deu-se ao deleite de um espasmo corporal. Mais fracção de tempo, menos fracção de tempo, entrou no local de trabalho. Momento de mudar o registo. As sensações que fiquem lá fora porque ali dentro era outra pessoa. Viu o que tinha a ver, planeou o dia, olhou para o relógio e aventurou-se no quadro metódico da conjugação do verbo trabalhar. Quantidade, quantidade, quantidade. De quando em vez a sensação de desagrado invadia-lhe o espírito mas, na falta de linguagem, voltava a focalizar nas infundas resoluções laborais. Consumiu-se de tal forma que as horas passaram e saltaram o almoço. Talvez por efeito da fraqueza desejou, em suplício, estar com os pés no Mar. Fechou os olhos e sentiu a face coberta de sal e os pés despidos na areia. Sentiu o estômago gelado. E as mãos frias, novamente. Já era tarde… e tarde se fez a razão. Passara anos a fio, em corrente desenfreada, sempre no mesmo registo. Desde a manhã em que saiu de si para a rua e resolveu caminhar. Dez anos volvidos, iniciara a sua “tarde”. E não dera por isso. Desejou ter esbofeteado o tempo. Trazia a sensação de desagrado que mais não fora do que uma solidão camuflada. Temia que a “noite” chegasse rápido demais. E lembrou-se dela. Lembrou-se do rosto dela. E quis, pela primeira vez, ter tido espírito, mais que tempo, para ter entendido o gerúndio que ela tanto enunciava. Não queria voltar a fazer o caminho até casa a falar consigo próprio. Queria memória. Não de momentos. Mas da soma deles. Descobriu, dentro de si, que o tempo é aquilo que soubermos aproveitar dele. Não deitou fora nem a manhã nem a tarde da sua vida. Abraçou-as com carinho. E prometeu que à noite dedicaria o seu maior sonho. Não a sonhar… Mas sonhando.

Dedico-vos este texto. Nós somos tudo o que sempre fomos mais o todo que vamos sendo. “o homem tem muito mais tempo do que aquele que sabe usar”. Não queiram “um dia” ser felizes. Façam por ir sendo.. Não abdiquem de sonhos, tentem gerir as dificuldades. E guardem de um dia mau o aroma a café que vos tenha sabido bem.

De alma aberta, e de gerúndio na mão,

de um livro sem prateleira,
Constança.




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