domingo, 5 de dezembro de 2010

Quase palpáveL

Há dias fiz o mesmo caminho que fizemos.
Lembraste? Caminhámos lado a lado sem dar as mãos.
Temos tanta dificuldade em dar as mãos.
Bem sei que não é suposto sermos vistos de mãos dadas, mas estávamos longe, muito longe, in a kingdom far far away, como nas histórias para crianças, longe do teu mundo, longe do meu mundo.
Falámos de cinema e de livros, falámos de todas as histórias, menos da nossa história.
Só não falámos do tempo.
E estava um céu tão interessante, cinzento chumbo, baixo, quase palpável, mesmo como eu gosto.
Pois, não sabias.
Qual é a minha cor preferida? Rápido, sem pensar!
Cinzento. Estás a ver, não sabias.
Depois de falarmos de tudo, sem falar de nós, sentámo-nos num banco do jardim. Primeiro lado a lado, o meu corpo longe do teu, far far away, três palmos mal medidos, e olhos postos no rio, as mãos arrumadas.
Se alguém perdesse dois minutos a olhar para nós ficaria com dúvidas, estão ou não juntos, mas ninguém perdeu dois minutos a olhar para nós.
As pessoas só perdem tempo a olhar para os outros nas felicidades e nas catástrofes, inveja ou pena, mas só um é pecado mortal.
Mesmo nós não perdemos dois minutos a olhar para nós, apenas temos olhos um para o outro.
O que é que eu faço sem teus olhos?
Até que a distância se tornou insuportável, e sem aviso desaguei no teu colo, eu em estado líquido, os teus braços à minha volta redondos e côncavos, como paredes de aquário, tu a segurar-me dentro de ti.
Eu às voltas no teu peito, uma tempestade dentro do teu peito capaz de virar todos os barcos, eu, meu porto de abrigo, dentro de ti.
Os teus dedos a afastar-me o cabelo dos olhos e a arrumá-lo com critério no armário atrás da minha orelha, os teus lábios na minha testa, no meu nariz, o teu cheiro, o compasso do teu coração, os meus olhos fechados.
Até que hoje, talvez porque estava o mesmo céu cinzento de chumbo, baixo, quase palpável, fiz o mesmo caminho.
De um lado o jardim, com os bancos de jardim, do outro lado o Tejo.
Os bancos de jardim com vista para o Tejo.
Os meus olhos apenas para os bancos de jardim.
Até que reconheci o nosso banco de jardim.
Sentei-me a olhar para o Tejo e para as gaivotas.
A verdade é que não eram gaivotas, mas não sei como chamar-lhes, e quando não se sabe inventa-se, não foi assim que nos ensinaram em pequenos, far far away.
Estive sentada cinco minutos, não mais.
Cinco minutos e a insuportabilidade da tua ausência.
Até que dez metros depois, também não sei se foram dez metros, far far away, quando não se sabe inventa-se, reconheço outro banco de jardim como o nosso banco de jardim, o que se repete dez metros depois, de repente todos me parecem iguais, e sinto-me infeliz e quase ridícula por me sentir infeliz e por não conseguir mostrar a mim mesma, eu a mim mesma, o nosso banco de jardim, porque todos os bancos de jardim me parecem iguais, e pergunto-me como é possível, se o nosso amor foi tão diferente.





8 comentários:

  1. Cara Raquel,
    muito bom!!
    Não imaginava que gostava de escrever short-stories.
    abs

    ResponderEliminar
  2. Dom José,

    A ler-me! Que surpresa saborosa.
    Aproveito para lhe dizer que estou dependente das suas imagens, o que é bom, nostálgico, mas bom.
    abs

    ResponderEliminar
  3. Raquel,

    Sabes que esta lengalenga vai dar um livrinho, não sabes?

    ResponderEliminar
  4. Pois Rodrigo... não sei!... sei apenas como foi complicado editar o primeiro livro :)

    ResponderEliminar
  5. Não sei se vai ler este comentário.
    De qualquer forma aqui fica.
    Gostei tanto deste seu texto que fiquei curiosa de ler o seu livro.Tinha-o encomendado e veio hoje.
    Bonita capa.
    Vou ler e depois se me permite cá volto a dizer-lhe alguma coisa.
    Boa semana
    Isabel

    ResponderEliminar
  6. Isabel... muito obrigada... fico à espera das suas palavras.
    Bem-haja.

    ResponderEliminar
  7. Olá Raquel
    não sei se vai chegar a ler este comentário.Espero que sim.Eu depois ainda volto aqui para ver.
    Acabei de ler o seu livro ( demorei, mas meteram-se outros à frente ).Gostei muito.Gostei da linguagem, muitas vezes poética ,gostei da forma como foi ligando as diferentes histórias que entrelaçadas fizeram a história completa. Gostei da maneira como com essas histórias foi introduzindo as diferentes personagens com as quais fomos simpatizando ou não. Gostei da Júlia.
    Gostei da forma como ao longo do livro foi abordando de forma suave,mas não menos importante, as diferentes questões que povoam as nossas histórias e levam a essa solidão que
    quase todos experimentamos em fases diferentes da vida - a violência doméstica, o aborto na adolescência, a adopção...

    Até eu me senti retratada quase no final do livro.

    Olhe, não faço a mínima ideia se teve sucesso ou não, porque só ouvi falar dele aqui, mas gostei e não me desiludiu.
    Espero que continue e se eu der conta que escreveu mais alguma coisa vou querer comprar e ler.

    "Dizem que o que é nosso, à nossa mão vem parar"
    Concordo completamente com esta frase do seu livro.

    Sucessos para o futuro.
    Um abraço
    Isabel

    ResponderEliminar
  8. Isabel,

    Não imagina o tamanho dos seus elogios, em especial no que toca ao facto de se ter sentido retratada, chegou a comover-me.
    E não sei que mais lhe diga, obrigada pelo seu tempo, por me ter lido e principalmente por se ter dado ao trabalho de me fazer chegar a sua opinião.
    E acredite que palavras assim me renovam o alento nos dias mais cinzentos.

    Um grande bem-haja

    ResponderEliminar