quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Ferreira Gullar

Muito pouco se falou de Ferreira Gullar, prémio Camões em 2010. Aliás, quando saiu o veredicto, correu um certo espanto no mundo livreiro: o que havia deste autor brasileiro para mostrar?

Estranho - para um poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta. Que conta com uma vasta obra e 80 anos de vida. Será que as pontes entre nós e o povo brasileiro não andam, ainda, um pouco desligadas?

Pergunto, como pode este nome ganhar o maior prémio da Lusofonia e tanta gente o desconhecer? Ou não haver nada disponível para ler neste país? Só muito recentemente se começa a ver alguma coisa...

Hoje deixo um pouco dele, num poema oferecido por uma amiga. Lamentavelmente, também pouco sei de Ferreira Gullar. Recentemente, saiu 'Rabo de Foguete - Os Anos de Exílio' e 'Poema Sujo' - um dos grandes poemas deste autor.

Venham conhecê-lo comigo. Em breve discutimos um pouco a sua obra...


Metade

Que a força do medo que eu tenho,
não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo o que acredito
não me tape os ouvidos e a boca.

Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio...

Que a música que eu ouço ao longe,
seja linda, ainda que triste...

Que a mulher que eu amo
seja para sempre amada
mesmo que distante.

Porque metade de mim é partida,
mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas,
como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos.

Porque metade de mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz
que eu mereço.

E que essa tensão
que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.

Porque metade de mim é o que eu penso,
mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto,
um doce sorriso,
que me lembro ter dado na infância.

Porque metade de mim
é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei.

Que não seja preciso
mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito.

E que o teu silêncio
me fale cada vez mais.

Porque metade de mim
é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba.

E que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer.

Porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada.

Porque metade de mim é amor,
e a outra metade...
também

2 comentários:

  1. A literatura imita mais a vida,a poesia desvenda mais a parte onírica, ou seja, tudo oque porventura sonhamos e que, ou não fazemos, ou não sabemos que somos, porque pouco nos conhecemos.E poetizar é ser um peregrino da alma, porque feito em total solidão, só assim fica mais facil olharmo-nos por dentro, por assim dizer, desvendar o ser! Concordo que pode ser a via da arte a mais viável de simplificação do ser.O mais sublime deste poema é alguém pensar-se como um todo composto por amor, isto após tanta ebulição intelectual.

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