A minha Rita foi como a Rita da canção do Chico.
A minha Rita foi-se embora e levou tudo com ela, só não levou os meus
vinte anos, porque eu já tenho mais do dobro, nem deixou mudo o violão, porque
eu não tenho nem nunca tive um violão, e mesmo que tivesse, o instrumento nunca
deixaria de ser um urso em hibernação, porque eu não sei tocar, nem cordas, nem
teclas, nem sopros, e mesmo quando toco campainhas são muitas as vezes em que
me engano, ou na rua, ou na porta, ou no andar, mas principalmente na rua.
Além de me perder no mundo com uma frequência indesejável, eu não sei
tocar, eu não sei cantar, eu não sei dançar, eu não sei cozinhar, eu não sei
coser nem bordar, eu não sei falar francês, eu não sei jogar à bola, e a minha
Rita, ultimamente dizia, que eu também não sabia amar.
A minha Rita foi embora ontem, e desde ontem que eu não voltei a sorrir.
Será que ela também levou o meu sorriso, ela dizia sempre que gostava do meu
sorriso, e ela levou tudo o que gostava. Levou todas as roupas do armário,
menos uma camisa branca e duas camisas azuis às riscas, tão finas, que a mais
de três passos, deixavam de existir para se fundirem no azul, todas com os
colarinhos demasiado gastos, umas calças castanhas, de algodão, cujo corte ela
dizia já não se usava, uma malinha de mão de verniz, preta, que eu nunca a vi
usar, uma camisola de lã, laranja, cheia de borboto, que ela só usava em casa, dois
pares de meias, verde musgo, com buraquinhos, cor que eu nem conhecia, antes de
conhecer a Rita, antes da Rita encher os três gavetões da cómoda com as suas
coisas, e uns chinelos de quarto, quase novos, que eu lhe ofereci no Natal que
passou, e dos quais ela disse que tinha gostado muito, mas não gostou, porque
os chinelos ficaram ali, esquecidos, a olhar para os pés da mesinha de
cabeceira, do lado esquerdo da cama.
A minha escova de dentes ficou só com os peixinhos amarelos do copo.
Peixinhos amarelos iguais aos peixinhos amarelos da cortina da banheira, da
mesma cor do tapete aos pés do lavatório. E ficou vazio o lado esquerdo do armário,
não ficou nem um boião de creme esquecido.
A Rita levou todos os livros que comprámos juntos. Levou todos, menos o
Saramago. Por mim ela bem podia ter levado o Saramago, foi ela que quis
comprar. Eu nunca gostei do Saramago e pelos vistos, ela também não. Mas não
tem perdão por me ter levado o Borges, porque sabe muito bem como eu preciso
dos poemas do Borges para adormecer. E com os livros a Rita levou todas as
tardes de sol de sábado, porque nós só comprávamos livros nas tardes de sol de
sábado. Bastava uma chuva miudinha, e a gente só saia da cama para o sofá e do
sofá para a cama, sempre aconchegados um no outro, a ler os livros que comprámos
nas tardes de sol de sábado, a ouvir o saxofone de Coltrane sobre o piano do
Monk, a dançar boleros no meio da sala. E púnhamos a mesa para o lanche, espremíamos
laranjas para sumo, fazíamos chá verde e torradas, e deliciávamo-nos com doce
de abóbora, que a mãe da Rita fazia tão bem, e requeijão. A Rita também levou o
doce de abóbora.
Hoje foi sábado. Hoje ainda é sábado.
A tarde foi de sol e eu nem saí de casa. A noite cai misturada com uma
chuva miudinha. Passei a tarde sentado no sofá, em frente à televisão. A
televisão desligada. A sala é iluminada pelo candeeiro da rua. A sala está
cheia de sombras, barulhinhos da chuva nas vidraças da varanda e memórias da
Rita. Oiço a Rita no quarto, com um brilhozinho nos olhos a trautear Godinho,
enquanto arruma a roupa nos gavetões do quarto. Oiço a Rita na cozinha a abrir
a porta do frigorífico e a encher um copo de leite, que deixa sempre, vazio, em
cima da banca. A Rita nunca arrumava a loiça na máquina. Era a única coisa que
eu não gostava na Rita. Oiço a Rita dançar no corredor. A Rita, quando ninguém
a via, dançava pelas divisões da casa, e era mesmo bonito de ver.
A
Rita levou também as nossas conversas, todas as conversas que nunca teremos, e
que eu já considerava nossas, porque a Rita não era deste mundo, mas de um
mundo onde a chuva nuns dias cheirava a canela, e noutros a manga, os céus
chegavam a ser cor de mirtilos, e os mares cor de alcachofra, e havia índios
que procuravam as penas pelos jardins da cidade, astronautas que não queriam
abandonar a lua, peixinhos a nadarem nas nuvens, crocodilos que passeavam pelas
ruas, leões que pintavam as unhas, ursos e pinguins a discursar nos jornais e
nas televisões, e bruxas de lambreta, e fadas madrinhas com quem conversava no
metro. E eu conseguia ver tudo aquilo, conseguia ver e viver num mundo, em que
não viveria se não fosse pela mão da Rita.
Hoje ainda é sábado e eu já sei que a Rita não mais volta. Eu por mim
dormia tudo até acabar a mágoa. Podia dormir pelo menos o resto do
fim-de-semana. Mas a Rita que já saiu de casa, ainda não saiu de casa e muito
menos de dentro de mim. Também não me apetece telefonar a ninguém. Como é que
eu explico que a Rita levou o doce de abóbora. Sabem, acho que vou sair,
procurar num shopping uma livraria aberta, e comprar os mesmos livros do
Borges, talvez consiga passar a noite a poemas e vinho maduro tinto. Depois no
domingo vejo o futebol. Com a Rita eu nunca via o futebol. Com a Rita a gente
passava o domingo em casa da irmã e do cunhado, eu nunca gostei dos domingos. A
Rita levou também os domingos.
Raquel Serejo Martins
Todo este texto é construído a partir de músicas. Do princípio ao fim...
ResponderEliminarAbraços, gosto muito! :)