segunda-feira, 17 de maio de 2010

Enorme retrato...


O livro que escolhi para arrancar esta experiência virtual de um grupo de leitores, tem sido um prazer. 'O grande retrato' podia bem ter o título de 'enorme'.

Dino Buzzati foi um pouco esquecido pela história. Mas não pelos leitores. Na realidade, este livro não é - nem de perto nem de longe - o seu mais conhecido. 'O deserto dos tártaros', é este o seu título de excelência, considerado, por quem anda nestas lides, uma das grandes obras do século XX.

Entrando no livro, que é o que importa... Não sei se gostam de mistério, suspense...? Bem, aqui a receita é muito bem orquestrada. Há um projecto científico que vai ser revelado a Ismani (professor e personagem principal do enredo). Este, parte para uma zona desconhecida sem saber para o que vai.

Leva a mulher e vai ganhar muito dinheiro, mas, nestas primeiras páginas, ficamos sem saber o que se trata, que trabalho é este... É a sua companheira quem mais tenta perceber para onde vai. Mas nem os principais responsáveis por comunicar a sua integração no projecto sabem ou querem desvendar a sua missão.

São estas as primeiras 65 páginas deste livro. Posso dizer que estou louco por revelar o segredo...

7 comentários:

  1. Dino Buzzati é considerado um dos mais importantes escritores italianos do século XX, embora, a julgar por este livro (o único que li do autor) algo distante da genialidade criativa de um Italo Calvino, da profundidade e humanismo de Alberto Morávia ou da imaginação e criatividade de Umberto Eco.
    No entanto, seria injusto formular um juízo de valor sobre Buzzati com base nesta obra. Trata-se de um pequeno livrinho com uma história algo delirante acerca de um cientista mais ou menos louco que desenvolve um misterioso projecto, uma máquina que recriaria uma espécie de super-inteligência artificial, mas com todos os ingredientes da alma humana.
    É difícil formular um comentário ao livro sem revelar pormenores do enredo, uma vez que este é tão compacto, tão sintético que não nos deixa grande margem de manobra para analisar o livro sem referir aspectos fundamentais desse enredo.
    No essencial, a mensagem fundamental do livro parece ser esta: não há sentido para a vida sem liberdade; e não há liberdade sem corpo. O misterioso professor Endriade, ainda marcado pela morte da sua primeira mulher, Laura, não consegue separar o projecto da sua dramática história pessoal. A dimensão do feminino e do amor humano acaba por revelar-se inseparável do lado racional do ser humano, por mais inteligência que a sua actividade envolva.
    Um ser artificial, por mais perfeito que seja, mesmo que dotado de uma “alma”, ainda que construída pela ciência, nunca poderá imitar um ser humano. Não é, portanto a inteligência que nos faz humanos. Não é também a alma; ela é insuficiente. Talvez ser livre seja, essa sim, a condição essencial para ser verdadeiramente humano. Sem liberdade, é impossível atingir qualquer sentido para a vida humana.
    Um livro simples, linear, que se lê agradavelmente durante um par de horas ou pouco mais.

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  2. Manuel, sugiro a compra imediata do livro 'O deserto dos tártaros'. Aí sim, será mais fácil adequar uma opinião sobre o autor.

    De qualquer forma, esta análise é bastante bem feita. Vou prosseguir a leitura do mesmo, agora até ao fim. E farei um comentário final.

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  3. Acho que coloquei o meu comentário no post errado :(

    Manuel Cardoso,
    Referes "Não há sentido para a vida sem liberdade" concordo plenamente, mas...
    Haverá liberdade para o homem/cientista se este estiver limitado pela ética nas suas buscas, nas suas invenções e descobertas?
    ou
    Em prol do progresso deverá avançar porque o seu "eu" é livre e a liberdade comanda-o?

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  4. Boas questões Paula. Até que ponto o 'eu' cientista se liberta do comando de outrem? Até onde vai tal liberdade?

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  5. Deixa lá, Paula, eu também coloquei um comentário ao Jorge Amado no post errado :)
    Eu li o teu texto e também tenho uma observação a fazer, mas primeiro vou tentar responder às tuas questões.
    Antes de mais um aviso: este comentário vai envolver spoilers; é inevitável, desculpem lá... por isso, se tencionam ler o livro, talvez seja melhor não ler daqui para a frente. Digo eu, não sei...
    Obviamente, não sou ninguém para responder ao que perguntas; os limites éticos da ciência têm sido motivo para tratados e mais tratados, ao longo de séculos!
    No entanto, a minha opinião é mais ou menos esta: a ciência deve servir O homem e não UM homem. Um cientista egoísta, que coloca o seu interesse acima de tudo é um mau cientista; é um charlatão. Foi assim que eu encarei o trabalho de Endriade: criou algo que ele julgava ser para seu beneficio, para a satisfação do seu capricho (ou amor, se quiseres) e não conseguiu antever os efeitos negativos que isso criaria nos outros e até em si próprio.
    Paula, uma coisa é a ambição; outra a obsessão. Endriade estava obcecado. Não foi em nome da liberdade que ele progrediu com o seu projecto; foi em nome da sua própria escravidão! Ele estava escravizado pelo amor a Laura; um amor doentio e anacrónico (uma vez que ela morrera).
    A liberdade, Paula, para um cientista ou para cada um de nós, é algo muito relativo. No fundo, se adoptarmos um ponto de vista filosófico, podemos até raciocinar até chegarmos à conclusão que a liberdade não existe, uma vez que tudo o que fazemos é condicionado por algo. No entanto, ao nível da ciência, a questão parece-me bastante clara - a liberdade do cientista deve terminar onde começa o prejuizo de outrem. No entanto, esta clareza é apenas teórica: depressa se descobre que mesmo a mais bem intencionada das descobertas ou invenções terá um qualquer aproveitamento negativo. Mas poderiamos nós dizer que a invenção da roda foi má porque os carros de combate usam rodas? Parecia-me disparatado.
    Da mesma forma, o projecto de Endriade poderia ter tido um beneficio enorme para a humanidade; mas alguém em algum momento haveria de o aproveitar para algo de negativo. Por acaso foi o próprio Endriade quem fez esse aproveitamento nefasto.
    Para clarificar o meu pensamento, que parece estar a ficar algo embrulhado: o cientista pode e deve ter liberdade para investigar, inventar, descobrir. No entanto, algo e alguém deve estar atento às utilizações mais ou menos negativas dessas descobertas. Einstein contribuiu para a invenção da bomba atómica; mas o responsável máximo por Hiroshima foi o presidente Trumann! Porquê? Porque ninguém foi capaz de o deter, de o impedir de concretizar esse acto abominável. Endriade e seus companheiros criaram um super computador, uma máquina maravilhosa; mas Endriade, escravizado por si próprio, fez a utilização negativa da liberdade que teve para o criar.
    Aí é que deveria ter terminado a liberdade de Endriade: quando "desviou" o projecto para uma utilização eticamente condenável.
    Aqui começariamos nós outra discussão: "e o que é eticamente condenável". será melhor parar por aqui :)

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  6. Rodrigo,
    Na minha opinião, o “eu” cientista é sempre mais forte e mais persistente. Em nome do progresso, avança na busca de algo inovador, sem olhar às consequências. No entanto, quando estas tornam-se fatais, a maior parte das vezes, o “eu” que era tão forte e poderoso só encontra saída e paz no suicídio, como aconteceu com o colega de Endriade.
    Em relação à liberdade, esta é um pouco complicada uma vez que há sempre as amarras das sociedade, da ética dos valores…acabamos por ser livres mediante certas regras…será liberdade??

    Manuel,
    Concordo contigo (novamente, mas temo não ser por muito tempo) quando dizes “a ciência deve servir O homem e não Um homem como aconteceu no romance. Mas o facto é que a ciência normalmente serve O homem e acaba prejudicando muitos homens em nome do progresso.
    Discordo contigo, quando dizes “que ele criou a máquina para seu próprio capricho”, na minha opinião ele quis juntar o útil ao agradável. Alem disso, tendo a máquina sentimentos e até poder e noção da mentira, porque não havia a máquina de ter alma? Agora duvido é que era a alma de Laura (afinal a máquina mentia e manipulava), penso ter-se servido desta história para lhe colocarem um fim à “vida”
    Nesta história toda, quem acabou sem liberdade interior foram Endriade e o seu colega (amante de Laura que acaba por se suicidar)
    Quanto à tua frase “a liberdade do cientista deve terminar quando começa o prejuízo de outrem” concordo plenamente, pena é que não seja assim e não somente na ciência.

    Acho que o projecto de Endriade, estava condenado desde o início. Nunca poderia revelar-se um bem para a humanidade, uma vez que estava por demais completo, sentimentos, inteligência e força. Lógico que só poderia dar no que deu e repito, não por ter a alma de Laura, mas por ter adquirido uma própria.

    Ps. Se nesse “carro de combate” fosse alguém da minha família e se ficasse magoado eu condenaria a invenção da roda. Com isto não quero dizer que sou contra o progresso, quero sim dizer que quando toca a nós é sempre diferente, não achamos que seja um dano colateral (como lhe chamam).

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  7. Olá Paula
    é um prazer discutir este assunto contigo :)
    Para facilitar a resposta vou focar apenas os aspectos em que não concordo contigo, também para animar a discussão :)
    Dizes que "o facto é que a ciência normalmente serve O homem e acaba prejudicando muitos homens em nome do progresso". Penso que no "deve e haver" entre os benefícios da ciência e os seus efeitos perversos, os benefícios ainda ganham "por goleada" :). Podemos, como gostavam de fazer os escritores russos, pôr em causa a utilidade do progresso, mas se o aceitarmos como algo de positivo, muito ficamos a dever à ciência.
    Quando eu disse que ele criou a máquina para seu próprio capricho, de facto, não fui exacto. O que eu queria dizer é que ele contruiu a máquina tendo em conta o seu capricho. Nesse aspecto, tens razão: procurou juntar o útil áquilo que ele considerava agradável.
    Não concordo contigo quando dizes: "tendo a máquina sentimentos e até poder e noção da mentira, porque não havia a máquina de ter alma?". Penso que para ter alma teria de ter muito mais que isso. A alma é criativa; a alma cria desejos, faz nascer paixões, sustenta a fé, cria esperanças e desilusões... por isso a alma precisa de liberdade; porque é criativa. A "alma" da máquina, por mais perfeito que fosse o mecanismo nunca seria uma verdadeira alma (nem de Laura nem outra) porque seria sempre algo de artificial, de racional. A alma não é racional, é o nosso lado das paixões irracionais.
    Finalmente, também gostava de fazer uma observação sobre o que dizes acerca do projecto de Endriade: ele não estava condenado ao fracasso; ele podia ter sido um sucesso como uma espécie de super-computador capaz de realizar calculos e deduções incríveis. O problema aconteceu quando o cientista introduziu o "eu" no processo cientifico; isso é que nunca poderia ter acontecido.
    Ps- eu não teria o direito de condenar a invenção da roda mesmo que nesse carro de combate fosse um ente querido e ficasse ferido.
    Paula, gostava de deixar bem clara esta ideia: o facto de discordar de ti nestes pontos não invalida outra verdade: o texto que colocaste no outro tópico está brilhante e depois também gostava de o discutir contigo :)
    Um abraço!

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